segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Metalinguagem

Começou. As pupilas caminhavam de uma extremidade à outra, como se ele lesse, no momento em que se deu por acordado. Envolto em três cobertores, e mesmo assim ainda com os pés para fora, ele sentia frio. Estava frio, chovia lá fora. Logo no dia em que Rorrim havia programado dar uma volta pela manhã e aproveitar o sol matinal. Ao abrir os olhos naquele instante, ele percebeu, pela luminosidade cinzenta que o seu quarto-sala vestira, que ele deveria mudar de planos.
Pôs-se de pé. Lavou o rosto na água gelada da torneira gelada. Vestiu o roupão de linho. Passou o café, encheu uma xícara grade. De certa forma ele achava que esses três elementos combinavam: o frio, o roupão de linho e o café. Se postos todos os três em uma única caixa iluminada cinzentamente, claro.
Por mais que apreciasse esse modo de vida preguiçoso, ele estava cansado. Queria sair um pouco de casa, sentia que não agüentaria nem mais um dia com a caneta na mão escrevendo corridamente durante horas. Rorrim estava escrevendo um conto interminável. Interminável não em extensão, mas em prazo de escrita e consumo de seu tempo, e também em outros elementos. Escrevia muito, e apagava e rabiscava mais ainda o que havia escrito. Aquela tarefa se tornara fadigosa. E agora, justamente no dia em que ele resolvera reservar para tomar um pouco de sol, a situação conspirara contra ele, forçando-o a debruçar-se mais uma vez nos escritos amontoados pelo chão de mogno da sala. Não havia saída. É claro que ele poderia fazer outra coisa ao invés de voltar a escrever naquele dia, mas, justamente no momento em que ele procurou algo que pudesse substituir tal atividade, sentiu um enorme remorso em abandonar os papéis e decidiu dedicar-se, por mais exausto que estivesse, a eles.
Deitou-se no chão, que também estava gelado, e apanhou as folhas: era assim que ele gostava de escrever. Decidiu não reler tudo o que havia escrito até então, ao todo três paginas. Recapitulou apenas as últimas linhas e pôs-se a escrever.
Não conseguiu escrever nada. Olhava para o teto, para as fendas no mogno do assoalho, para a xícara de café, agora já vazia, para o ar invisível, mas não conseguia extrair de nada faísca que pudesse impulsioná-lo a retomar o conto. Sentiu-se sem energia alguma e totalmente indisposto a escrever naquele momento e decidiu recorrer a uma antiga técnica de relaxamento que não praticava há tempos: visitar o porão.
Levantou-se, definitivamente, e foi ao porão. Desceu as escadas de madeira semi-podre, devido à umidade do local, e olhou a sua volta. Adorava porões. Dirigiu-se a um amontoado de caixas de papelão, as quais nunca havia reparado naquele recinto. “Devem ser do antigo dono da casa.” Abriu-as. Em seu interior, havia muitos livros, o que o deixou contente. Um deles era um que ele havia lido há muito, sobre uma personagem chamada Dorian. “Idiota, ele... Como nunca percebeu que aquele quadro de quadro não tinha nada, era simplesmente um espelho! Muito idiota...”, comentou.
Contudo, o que mais lhe chamou a atenção foi um ramalhete de papéis. Parecia ser um conto. Ao ler o título, encabulou-se: “Metalinguagem”, o mesmo do conto que estava escrevendo. Estranhou. Correu de volta a sala, jogou-se no chão, colocando ambos contos lado a lado.
Iniciou a leitura do conto (que apenas se diferenciavam pelas cores das páginas, mais amarelas e, as do outro, mais alvas). A história narrava os fatos de um escritor que, ao cansar-se de escrever um conto, dirige-se ao porão e encontra, acidentalmente, um conto com o mesmo título – Metalinguagem – do que escrevia. Estranho. O enredo parecia referir-se ao próprio conto. Ora, esse era o tema da história! Havia mais: o conto ainda relatava a comparação e o estranhamento do autor ao comparar as histórias, que faziam referências a si mesmas. Estranho!
Agora não sabia mais diferenciar os contos: não sabia mais qual era o seu, qual era o achado no porão. Eram idênticos. Na verdade, possuíam uma diferença básica: a cor. Não julgue Rorrim por daltônico e muito menos idiota por não saber diferenciá-los com base nesse critério. O fato é que ele simplesmente não sabia qual dos dois era o seu justamente, pois, em ambas as narrativas havia um trecho que dizia exatamente assim: “[...] que apenas se diferenciavam pelas cores das páginas, mais amarelas e, as do outro, mais alvas.”, o que impedia com que ele soubesse se o de paginas brancas ou amarelas era o seu por falta de um especificador de referencial!
Rorrim se sentia perdido e com mil flechas apontando em direção a ele. Os arcos eram brandidos por ele mesmo, como se estivesse em frente a um espelho, olhando para si mesmo, em um labirinto labiríntico que dava voltas e terminava no mesmo lugar. E ele leu esse trecho na versão de páginas amarelas e achou interessante a construção “labirinto labiríntico”, um jogo de vocábulos que contribui para a construção de uma figura linguagem criativa, já que a própria idéia de labirinto é evocada na expressão formada. E, essa idéia é ainda mais valorizada se trabalhada em um conto cujo intuito principal é fazer com que o leitor se sinta em um labirinto. Opa, essas últimas assertivas são problemáticas: elas rompem com gênero desse texto, ele deixa de ser um conto passa a ser uma análise. É melhor apagá-las. Ou não? Deixá-las-ei aí, não as apagarei...
“Deixá-las-ei aí”, disse Rorrim, ao ler a versão branca do conto.
“Deixá-las-ei aí”, disse Rorrim, ao se ler na versão amarela do conto.
(Preocupação com a colocação pronominal é algo tão erudito!) Riu ao ler esse trecho em alguma das duas versões, não sabia qual.
Seus joelhos doíam por estarem a muito tempo sendo pressionados contra o chão duro de mogno. Hoje ele sabia que havia sido um erro não haver colocado carpetes macios por todo o chão da sala, se houvesse feito isso, seus joelhos não estariam doendo naquele momento. “Ao ler essa passagem de uma das duas versões, ele reparou que a palavra ‘erro’ havia sido escrita com a grafia errada e resolveu corrigir. Fez isso em ambas as versões. Odiava erros ortográficos”.
Rorrim decidiu fazer algo que não estivesse na narrativa. Queria dar uma de espertinho, de romper com a metalinguagem. Mas o que poderia fazer para conseguir isso? “pensou.” Já sei: vou tentar romper com a metalinguagem! Duvido que isso esteja narrado aí! “... Será?”, levou o dedinho à boca.
Seu próprio ato já fornecia respostas para sua dúvida. Às vezes, escrever é vigiar.
E, lembrando-se da definição tosca do gênero literário “Conto” que uma professorinha de primário ensinou-lhe (uma narrativa curta e blá, blá...), pegou a versão amarela e leu o seguinte trecho: “E, lembrando-se da definição tosca do gênero literário “Conto” que uma professorinha de primário ensinou-lhe (uma narrativa curta e blá, blá...), pegou a versão amarela e leu o seguinte trecho...”
De olhos arregalados, ele atirou o conto amarelo ao chão, assustado.
“Rorrim percebeu, ao ler esse exato trecho nessa versão branca do conto, que todos os fatos narrados aqui refletiam simplesmente os fatos que estavam se passando em seu dia! Desde o momento em que acordara! Ele era o personagem daqueles enredos que lia e que escrevia.”
Enraivou-se e rasgou todas as folhas que estavam a sua frente. Não havia mais contos agora. No entanto, por que essa metalinguagem alucinante continuava e continuou?
Na verdade, ainda existia uma versão do conto recontando a um leitor escritor, ou a um escritor leitor, os fatos renarrados da narrativa. Não é? É. E é por isso que o conto que Rorrim escreve é interminável.

sábado, 29 de dezembro de 2007

Mergulhando

-Nossa, mas você vai comprar um peixinho de estimação? Mas eles morrem tão facilmente!
-Eu também.
Silêncio gelado. Grilos ao fundo, olhos ao chão.

Calvinando

"Começou a fazer um diário: fotográfico, claro. Com a máquina pendurada no pescoço, afundado numa poltona, disparava conpulsivamente com o olhar no vazio. Fotografava a ausência de Bice."
Gli Amori Dificili, Italo Calvino, pag.62.
Italo Calvino me deixou com uma incrível vontade de tentar dormir em um compartimento de vagão de trem durante uma viagem que dure uma noite. Ai, como ele é foda.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Saraivando

Querido dsiário, [adoro curtir com gêneros literários! haha!]

Comprei dois livros importantes hoje, por puro impulso. Um deles eu já estava namorando a muito tempo, o outro, foi paixão a primeira vista ao vê-lo naquela prateleira de madeira, quietinho, sorrindo para mim, em meio a todo aquele clima de ar-condicionado da livraria.
O primeiro, um curso de Italiano, passo a passo. Interessante, decidi hoje que vou ser autodidata para algumas coisas. No caso de aprender Italiano, decorre da conclusão de que eu não vou perder meu tempo frequêntando aulas de uma língua que não é essencial e muito menos tão importante quanto outras na minha vida. É puro hobby, e uma paixão que vem desde Cabíria e seu "Io no voglio vivere più!".
O outro é o tipo de livro que se compra por ostentação, para se ter na sua biblioteca particular: um volume único com as obras completas dos Irmãos Grimm, traduzido para o Inglês numa versão de 1869 (uma tradução anônima, o que é ainda mais emocionante, hihi!). Ah!, o melhor: por apenas 14 reais.
Eu cometi a piada de pedir para embrulhar para prensente, como se as atendentes estivessem bem desocupadas e disponibilíssimas para realizar tais caprichos de uma pessoa em um momento tosco. Mas eu quis para presente! Quis me dar os livros. Pronto.
- Aqui está, Felipinho, uma lembrancinha, meu querido!
-Oh! - cara de espanto -, mas que honra!

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Aviso

"Gentse, como assim vocês ainda não perceberam que a nova música da Britney, Gimme More, é sobre drogas???"

Ruta no Ra


Almoçar no RU às vezes tem enormes vantagens, mesmo quando o cardápio não é estrogonofe de soja ou hamburger de frango. Dessa vez eu comi sozinho. Solito, como diria minha mãe. Do meu se sentaram dois sujeitos daqueles que você não consegue supor, por mais conectado que você seja aos esteriótipos universitários, qual curso faziam. Um deles tinha um semblante lento, o outro, rápido por demais.


-Pois é cara, é muito interessante esse lance de origem das palavras né? De línguas e tal... - esse é o lento.

-Nossa, muito mesmo. - o rápido.

-Eu tenho um amigo meu que é croata, imagina só a língua dele!

-Nossa... Você sabe, né? Tipo, a origem dos nomes desses países da lá, né? Tipo, vem de slave, que significa escravo em inglês.

-É mesmo?

-É. Slave significa escravo, e foi por isso que os países de lá mudaram de nome. Tipo, Eslovenia, Eslováquia, todos daquela região lá - aí ele começou e não parou mais - pois é, e tipo, é muito interessante essa questão por que você pode perceber a história desses processos. Era uma vergonha pra esses países terem um nome que derivasse de uma palavra que significa escravo em outra língua. Por isso eles mudaram. Mas tudo isso ocorreu porque os europeus eram tão preconceituosos que nem negros eles escrevisavam naquela época, então eles escravizaram esses povos do centro da europa, a Croácia, Elovênia, Eslováquia e tal...


Juro que é tudo veradade! Quase não consegui degustar meu incrível pedaço de alcatra asada por causa dessa incrível análise! Que medo! Já sei de onde vou retirar o tema para o meu Projeto de Iniciação Científica: "Uma Análise Linguístico-Causal para uma nova historiografia das Relações Internacionais", ou então, "As Línguas Anglo-saxãs como a base para todo o constrangimento Internacional". Incrível, o cara era um gênio!


Esse epsódio me fez lembrar o quanto eu odeio pessoas que presumem um conhecimento de mundo incrivelmente maior do que possuem. Que arrogância. E ignorância, por que julgam que o interlocutor var acreditar em tudo o que ele despeja língua à fora. Acho triste. Acho divertidíssimo.


[Gente, que horror. Ao terminar esse post, fui pesquisar um pouco sobre a Croácia e descobri que ela não tem um Lema! Tá na wikipédia! Credo, como deve ser triste para eles! Não ter um lema...]

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Pânico na Sala de Aula


Vida de professor não é fácil.

Eu tenho um aluno meio estranho. Ele tem uma pronuncia perfeita, mas é muito estranho, sabe daquele tipo que se senta em uma cadeira e fica curvado, como se escondesse algo, ou como se não quissesse olhar para ninguém. Pois é, ele sempre vem de bicicleta pra aula e sempre chega exatos quinze minutos atrasado.

O fato é que hoje ele veio sem bicicleta. Não, o problema que me assustou não foi esse, foi outro. No decorrer da aula, que era basicamente de conversação, uma pergunta foi proposta pelo livro:

-Do your friends often laugh at you?

E eu dirigi essa pergunta à ele:

-Yes, they do always.

-Yes, really? But, why?

-They call me "cabeça de panetone"...

-Really?

-Yes... - olhou para um ponto perdido no chão da sala, com um semblante por demais sério - mas tudo isso vai mudar, tudo isso vai mudar, hoje isso tudo vai ser diferente...

Aí sim eu fiquei com medo. Já tava vendo o menino matando os amigos em uma fúria vingativa! Sempre a mesma coisa, as vitmas de bully se rebelando e esfaqueando os agressores! Que horror! Aposto que ele ja havia até comprado a AR-15 pra metralhar todos eles! Ah! Agora tudo se encaixa! Era por isso que ele havia vindo à pé pra aula hoje! Ele vendera sua bicicleta pra comprar a AR-15!!! Tudo se encaixa!

Minha ilusão derreteu quando ele retomou a palavra e disse:

-Porque hoje eu vou cortar o cabelo.


quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Melodias de Vida


O grande tema da minha vida, assim como constataria Kundera, eu descobri há alguns dias, apesar de toda a presunção. A minha grande problemática é a minha constante vontade de ter poder sobre tudo. A minha percepção de que o poder está em tudo é muito parte de como eu funciono. Não é simplesmente um autoritarismo extremado, mas sim uma vontade de obter controle, pelos mais diversos motivos. É foda. Eu me articulo de todas as formas, não sei se para controlar situações ou se para me dar a ilusão de que controlo alguma coisa. O poder me explica muito bem. Depois, mais foda ainda é quando eu descubro que eu não tenho todo esse controle, que nem controle sobre nada eu tenho. É foda, e daí, como não poderia ser diferente, eu sofro.

Odeio posts muito pessoais, odeio. Não sei lidar com a preponderância arrogante de ficar digitando palavras contaminadas de muitos eus e meus, que chatice. Meu ego-problemático-suicida não dá conta de aceitá-los. Desculpem-me, não dei conta de evitar esse.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Discussão acerca da existência de uma natureza humana e a importância da deliberação frente às suas problemáticas


A discussão acerca da existência de uma natureza humana, que proporcionaria ao homem direitos inalienáveis, é inútil. No entanto, visto que existe uma percepção intra-social realizada pelos indivíduos acerca de direitos inalienáveis, feita através do contato destes com sua cultura e com suas ideologias, sejam eles válidos ou não, deve-se considerar tanto a sua função na sociedade quanto a possibilidade de formulação desses direitos inerentes à uma suposta "natureza humana" que forçariam ações individuais e sociais. A problemática inserida nisso é não só o reconhecimento e legitimação desses diretos, mas também de avaliação dos mesmos. Por isso, em termos normativos, deve-se investir em políticas de deliberação com o fim de propiciar discussões que visem alcançar e definir consensualmente, sendo isso possível ou não, quais são esses direitos que os membros da sociedade enxergam através da sua lente cultural-ideológica.


A Monografia


16h50, minha casa:

lyanna (clack!) - www.waltzforanight.blogspot.com diz:que isso?a modernidade, que me fez o favor de acabar com os heterosvai ser minha monografia."A modernidade e a morte do cromossomo y"

pi diz:kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk mas tem que ser na area de letras, entao o tema tem que ser esse: "A relação entre a linguistica aplicada da modernidade e o cromossomo y"

lyanna (clack!) - www.waltzforanight.blogspot.com diz:"e a morte do cromossomo". tenho que falar que ele morreusenão vão achar que escrevi sobre ele. daí fica sem créditos. ah não

pi diz:nao, lý. é pq vai ser uma dissertação literária, vc só vai contar que o cromossomo y morreu no final, NO CLIMAX!!! ai as leitoras choram. senao forem feministas, claro.

lyanna (clack!) - www.waltzforanight.blogspot.com diz:HSAUihsaiushaiusaHiUAShsaUIhSAeu vou chorar escrevendoah não, gente. ah não, pi!

Aquela que devia ter comido o próprio cérebro



O de sempre: adoro programas vespertinos. O de hoje apresnetava uma matéria sobre comidas exóticas. O repórter perguntou a uma mulher que acabara de experimentar cérebro de boi:
-E aí, o que você achou?

-Olha, até que o gosto não é ruim não. Posso dizer que não me traumatizou não. Mas sei que nunca vou esquecer disso.

Incoerência é foda: Freud chuta mais uma vez a tampa do caixão.

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

A Mostarda


E como fica a questão do artista que produz uma obra que, quando é apreciada pelo público, esse descobre nela alguma outra coisa que o próprio artista não havia pensado, que não havia sido conceituado? Como fica? Como fica a obra, enriquecida-além ou deve-se desconsiderar o detalhe-além-dos-olhos-do-próprio-criador por aquele não ter sido envolvido na conceituação artística?

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

A Pia

Já fazia um mês que aquela pia estava daquele jeito, nojenta! E a moça das pernas depiladas refletia sobre aquele fato – sempre com o queixo caído, estática, com os olhos fixos num ponto no canto do teto. Como podia deixar a situação chagar àquele ponto? Não havia limites, não havia tolerância que superasse aquela aberração. Um horror. Aquela pia estava um horror. E ela continuava pensando, com preguiça, que a culpa daquilo tudo era da própria preguiça. Da preguiça e da incapacidade que ela tinha de terminar as coisas, de resolvê-las e atirá-las em direção a um limbo para onde vão as coisas-resolvidas-e-que-não-mais-incomodam-os-homens. O motivo não seria necessariamente o fato de ela morar só, motivo o qual a daria a liberdade de resolver os próprios problemetes cotidianos quando quisesse, ou quando não agüentasse mais, como sempre ocorria. Havia cabelo na louça branca da pia, que deixou de ser branca devido ao sucessivo acúmulo de baba, xampu, pasta dental, loção para barbear, excrementos, restos de vômito, leite azedo (pois ela achava um crime jogá-lo no lixo e fazer os lixeiros, pobres servidores da podridão humana, carregarem em seus intermináveis sacos pretos que vazariam, vazariam, vazariam e gotejariam cansativamente), catarro, sangue menstrual e nasal (“Senhores passageiros, desculpem-nos pela umidade baixa”), gelatina de uva, leite condensado e coca-cola light (por que ela era interminavelmente gorda). Mas ocorre que, entre lençóis quentes e uma noite abafada, ela acorda. Levanta-se da cama com um salto violento e corre ao banheiro. Para. Abaixa a cabeça 27° e observa a Pia Negra. Cerra o olho esquerdo alguns milímetros e forma uma feição desafiante. O ápice havia chegado e ela não sabia de onde ele vinha. Teria entrado pela porta sem que ela percebesse? Não, a campainha teria tocado. Os ápices tocam campainha? Ela não sabia. Teria entrado pela janela? Não sabia e aquilo não interessava mais. No escuro do banheiro grande de sua casa, ela arregaçou as mangas e dirigiu-se ao monumento à sua frente, apoiou o braço direito na borda, violenta mais cuidadosamente para evitar um deslizamento devido à viscosidade que a louça adquirira, e mergulhou profundamente a mão na poça de água (substantivo que há muito deixara de querer nomear aquele líquido acumulado naquele local). Ela sabia que estava entupido. Ah, ela sabia, e ela temia isso. Mas agora era pra valer. Aproveitando as dobras de gordura que ela decidira ter na palma da mão, ela começou a pressionar o ralo, fazendo uma força que resultasse em uma pressão que possivelmente resolveria o problema do entupimento desagradável. Palma da mão e ralo de metal. Um vai-e-vem interessante. E ela começou com o movimento de pressão energicamente, batidamente. Excitante. Que loucura, que coisa maravilhosa, que ritmo impressionante, que delícia! Ela descobrira a oitava maravilha do mundo (ou da sua própria casa). Como poderia ela nunca ter se dado conta de que tinha, logo ali no banheiro, uma amiga que estava sempre esperando por ela, um consolo, um prazer-pronto-e-prático: sua piazinha linda! O braço já apresentava fadiga quando ela decidiu acelerar o ritmo, agora ela já urrava, se debatia (sem tirar a mão do ralo), jogava a cabeça pro lado, esquematizava expressões felinas. E tudo parou em um jato. De repente. O ralo explodira a pia quebrara. A moça caíra espatifada no chão e a pia de bunda caíra no tapete. Ela, suando, olhou para o teto mais uma vez e disse, chega, vou deixar para separar os parágrafos depois... depois, depois, não preciso fazer isso agora, estou com preguiça. Reticências.

sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Dalí


Surreal.

Mais surreal que o próprio surreal é o próprio Dalí em uma programa de perguntas e respostas onde pessoas tentam descobrir quem é a celebridade que responde a perguntas com o mínimo de coerência possível.
(um beijo para um pedacinho de flor)



segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Andança


Percebi hoje que faz uma semana que a palavra "nada" tem me rejeitado. É simples, ocorre que sempre que eu vou escrever “nada” rapidamente, o que sai na tela é ‘”anda”. Curioso.
Talvez seja tempo de andar e da não fazer o nada.

domingo, 26 de agosto de 2007

Se minha cabeça doer

É curioso. Momentos trelosos.
Um. Uma sala da faculdade, um aviso atrás da porta de entrada gritava em letras vermelhas escorridíssimas: “Não retirar as cadeiras desta sala!”. E, logo a baixo, uma inscrição à caneta, letra cursiva e muito pessoal, retrucava: “E o direito de ir e vir das cadeiras?!”. Isso definitivamente me fez pensar em como o ser humano é um ser maligno, que faz uso de tudo ao seu redor em beneficio próprio, que oprime, castra, mutila e ursupa direitos! Que mundo triste! Como ficarão as pobres cadeiras em meio a tanto abuso? Que difícil deve ser para elas.
Dois. Eu andando nas entrequadras. Fim de tarde, passa do meu lado uma moça com um cachorro, cuja raça desconheço. O animalzinho segurava com a boca um gravetinho, daqueles que a gente vê em desenho animado mesmo, um gravetinho perfeito, brinquedinho preferido dos cães. Pois é, então, após observar que a dona estava de cara feia e nem olhava para animal, eu pensei que o cão poderia muito bem estar brincando sozinho, fazendo tanto o papel da dona, ao atirar o graveto para longe, quanto o seu próprio papel, o sair correndo (com a língua de fora) para apanhar a madeirinha. Uma revelação: dessa forma, pensei, o cachorro poderia ir aonde quisesse, ir à China, andar sem se cansar, pois estaria brincando e nem veria o tempo passar, bastava apenas ele ir atirando o gravetinho cada vez mais longe e mais longe e mais longe e mais longe e mais longe e mais longe e mais longe e mais longe e mais longe China.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

Vento e Vidro


Ás vezes eu tenho medo de pronunciar minhas expctativas, como se elas fossem bolas de cristal prestes a se despedaçarem no chão. Secas, quebradas, perdidas.

É como se minhas impressões saissem de mim e se mostrassem em uma tela branca em frente, acenando, gritanto que todas estavam erradas. E nunca mais voltassem.

terça-feira, 7 de agosto de 2007

Análise - 8 Femmes

Assim que terminei de assistir esse filme de François Ozon, a primeira coisa que me veio à mente, ao pensar em escrever uma análise, foi que eu encontrei muitas idéias interessantes esparramadas pela trama. E que trama, para começar dizendo! Com trejeitos marcantes de Agatha Christie, a rainha do noir - por mais que 8 Femmes não compreenda totalmente a estética noir, todo o clima misterioso e duvidoso do enredo nos coloca em meio a um quebra-cabeça de segredos que devem ser revelados com o decorrer da história.
Acima de tudo, 8 Femmes é um filme francês. Tanto pelo cuidado com a cenografia e com o figurino – lindos e coloridíssimos – quanto pelos temas peculiares e pouco comuns que a história aborda, como é o caso do relacionamento de Marcel com as filhas. Também devemos nos lembrar das músicas típicas francesas que dão ritmo à película, por mais que elas nem sempre estejam de acordo com o enredo ou com a situação que se desenvolve na história. Aliás, uma análise que não esteja tão preocupada com a verossimilhança do filme, poderia mencionar que as partes musicais servem simplesmente para chamar a atenção do publico para longe do quarto onde o morto, que não está morto, se encontra; distraindo o espectador e escondendo a verdade, como se todas elas soubessem que Marcel ainda estava vivo. Boa interpretação, mas peca pela falta de verossimilhança.
O que mais me encanta no filme é a visível estática teatral que o permeia do começo ao fim e que se mistura com o melhor glam francês, visível em Pierrette e em Augustine após a transformação. Observamos que a maior parte da história transcorre em uma sala de estar, com seus vários ambientes que dão espaço ao entra e sai das atrizes. Fantástica o último take da exibição que mostra as oito de mãos dadas de frente para a câmera, como que para fazer reverência e agradecer pela presença da platéia.
Vale muito à pena comentar alguns elementos componentes do enredo. O primeiro deles é a reação que as personagens têm ao saberem da morte do Patriarca Marcel, visto que, à exceção da caçula nos primeiros momentos depois da descoberta do assassinato, nenhuma outra personagem se mostra chocada ou aterrorizada com o ocorrido.
Em segundo plano, porém com uma importância catastrófica no filme, temos algo que pra mim é o que há de mais rico em toda a história: o fato de todos aqueles conflitos, problemas, discussões, casos e intrigas, aparecerem exatamente na situação da morte de Marcel, e justamente em função desta. É como uma bomba que cai em uma cidade e causa seus efeitos. Esse detalhe se faz muito importante para a compreensão da história, pois era exatamente isso o que a caçula queria trazer à tona, mostrar que nenhuma daquelas oito mulheres amava Marcel.
O desfecho é algo impressionante. Após a descoberta de que o pai não está morto (um anticlímax muito bom), mas apenas trancado no quarto onde o suposto assassinato ocorrera, o suicídio do mesmo ocorre com o intuito de por um ponto final em tudo aquilo que se desenvolveu durante todo o filme, como um último suspiro, querendo abandonar todos aqueles problemas que habitam aquele ambiente de família.

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

La TV de June



Não vou discutir se TV presta ou não, isso é clichê de mais. O fato é que, eu em meu dia do ócio chato, mais uma vez, vou pra sala e ligo a tv. Aí vejo lá uma apresentadora apresentando umas dez pessoas com seus animais de estimação mágicos. Todos esquisitos.
Pois é, estava ela lá com uma cobra amarela, a tal da piton (que todo mundo já cansou de ver mas que ninguém se cansou de perguntar se ela pica) amarrada ao pescoço e conversando com a dona, uma mulher qualquer.
Eis que a pergunta é feita:
-E então, Gisela, quando foi que você decidiu ter uma cobra de estimação?
-Uai, tudo começou com um sonho... Eu passei a sonhar constantemente que eu tinha uma cobra de estimação e que a minha vida era muito mais feliz. Rsrs...
Pausa pro comentário. Pense em Freud ouvindo sobre o sonho dessa sujeita. Pense nele tremendo na cova.
Agora pense na cara de Freud quando ficasse sabendo que a louca sonhadora comprou uma cobra por causa do sonho! Pense! Desapontamento total! Aff total!
Caí da cadeira...
E pra complementar, a proprietária do bicho diz:
-Nossa, e a cobra abre portas...
-Como assim? – pergunta a apresentadora tentando se desvencilhar dos inúmeros tentáculos do animal por todo o seu corpo.
-É... ela aprendeu que se ela enrolar o rabinho envolta da maçaneta...
Reticências.

terça-feira, 31 de julho de 2007

Não Jogaremos mais Xadrez com a Morte

Eu me lembro da primeira vez em que assisti a um filme do Bergman e do primeiro comentário que fiz, antes do seu fim. Disse “Que filme denso!”, e era mesmo. Morangos Silvestres. Hoje eu não recomendaria esse como o primeiro do diretor para alguém assistir, de forma alguma. Mas me lembro que gostei muito.
Já escrevi muito sobre Ingmar Bergman. Não vi todos os filmes, mas uns sete eu garanto. Quando alguém me pergunta “qual seu diretor favorito?”, a primeira coisa que eu respondo é “pode fazer uma pergunta mais fácil?”, mas o que está lá no fundo da minha tela mental, acenando luminosamente, é o tabuleiro de xadrez na praia de O Sétimo Selo, a cenografia toda em vermelho de Gritos e Sussurros, a toda a pele e a máscara de Persona...
É difícil tirar ele da cabeça, é difícil colocar ele na cabeça. Por mais que o reducionismo que alguns jornais tem feito com ele, limitando-o à angustia e ao silêncio, me deixe puto, eu concordo com isso. Mas falta, Bergman é corrosivo por demais, denso por demais, literário por demais, interior por demais.
É fato que até hoje eu não assisti filme mais rico do que Persona. Rico e belo. É o que tem a melhor cinematografia, na minha opinião. Dá inveja às vezes, a habilidade dele em lidar com idéias tão íntimas. Dá inveja como ele consegue trabalhar tão bem todo o conteúdo que joga esparramadamente na tela branca em branco-e-preto.
Sabe, é muito difícil eu chegar a dizer isso, mas se eu fosse um cineasta e tivesse na bagagem toda uma cinematografia do nível da que Bergman construiu, eu estaria muito próximo (porque realmente estar lá é algo impensável para mim, nesse sentido) da satisfação.
Em comum com ele, eu tenho o medo de envelhecer, presente em Morangos Silvestres, e o incondicional apego à juventude. E agora lá está ele, jogando xadrez com a morte. Que puta idéia, deus!