quarta-feira, 26 de setembro de 2007

A Mostarda


E como fica a questão do artista que produz uma obra que, quando é apreciada pelo público, esse descobre nela alguma outra coisa que o próprio artista não havia pensado, que não havia sido conceituado? Como fica? Como fica a obra, enriquecida-além ou deve-se desconsiderar o detalhe-além-dos-olhos-do-próprio-criador por aquele não ter sido envolvido na conceituação artística?

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

A Pia

Já fazia um mês que aquela pia estava daquele jeito, nojenta! E a moça das pernas depiladas refletia sobre aquele fato – sempre com o queixo caído, estática, com os olhos fixos num ponto no canto do teto. Como podia deixar a situação chagar àquele ponto? Não havia limites, não havia tolerância que superasse aquela aberração. Um horror. Aquela pia estava um horror. E ela continuava pensando, com preguiça, que a culpa daquilo tudo era da própria preguiça. Da preguiça e da incapacidade que ela tinha de terminar as coisas, de resolvê-las e atirá-las em direção a um limbo para onde vão as coisas-resolvidas-e-que-não-mais-incomodam-os-homens. O motivo não seria necessariamente o fato de ela morar só, motivo o qual a daria a liberdade de resolver os próprios problemetes cotidianos quando quisesse, ou quando não agüentasse mais, como sempre ocorria. Havia cabelo na louça branca da pia, que deixou de ser branca devido ao sucessivo acúmulo de baba, xampu, pasta dental, loção para barbear, excrementos, restos de vômito, leite azedo (pois ela achava um crime jogá-lo no lixo e fazer os lixeiros, pobres servidores da podridão humana, carregarem em seus intermináveis sacos pretos que vazariam, vazariam, vazariam e gotejariam cansativamente), catarro, sangue menstrual e nasal (“Senhores passageiros, desculpem-nos pela umidade baixa”), gelatina de uva, leite condensado e coca-cola light (por que ela era interminavelmente gorda). Mas ocorre que, entre lençóis quentes e uma noite abafada, ela acorda. Levanta-se da cama com um salto violento e corre ao banheiro. Para. Abaixa a cabeça 27° e observa a Pia Negra. Cerra o olho esquerdo alguns milímetros e forma uma feição desafiante. O ápice havia chegado e ela não sabia de onde ele vinha. Teria entrado pela porta sem que ela percebesse? Não, a campainha teria tocado. Os ápices tocam campainha? Ela não sabia. Teria entrado pela janela? Não sabia e aquilo não interessava mais. No escuro do banheiro grande de sua casa, ela arregaçou as mangas e dirigiu-se ao monumento à sua frente, apoiou o braço direito na borda, violenta mais cuidadosamente para evitar um deslizamento devido à viscosidade que a louça adquirira, e mergulhou profundamente a mão na poça de água (substantivo que há muito deixara de querer nomear aquele líquido acumulado naquele local). Ela sabia que estava entupido. Ah, ela sabia, e ela temia isso. Mas agora era pra valer. Aproveitando as dobras de gordura que ela decidira ter na palma da mão, ela começou a pressionar o ralo, fazendo uma força que resultasse em uma pressão que possivelmente resolveria o problema do entupimento desagradável. Palma da mão e ralo de metal. Um vai-e-vem interessante. E ela começou com o movimento de pressão energicamente, batidamente. Excitante. Que loucura, que coisa maravilhosa, que ritmo impressionante, que delícia! Ela descobrira a oitava maravilha do mundo (ou da sua própria casa). Como poderia ela nunca ter se dado conta de que tinha, logo ali no banheiro, uma amiga que estava sempre esperando por ela, um consolo, um prazer-pronto-e-prático: sua piazinha linda! O braço já apresentava fadiga quando ela decidiu acelerar o ritmo, agora ela já urrava, se debatia (sem tirar a mão do ralo), jogava a cabeça pro lado, esquematizava expressões felinas. E tudo parou em um jato. De repente. O ralo explodira a pia quebrara. A moça caíra espatifada no chão e a pia de bunda caíra no tapete. Ela, suando, olhou para o teto mais uma vez e disse, chega, vou deixar para separar os parágrafos depois... depois, depois, não preciso fazer isso agora, estou com preguiça. Reticências.