quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

Fragmentações

Desculpe-me por não ter, ou ter e não querer fornecer, uma poçãozinha rocha-choque. E é por isso que as coisas na vida tem que ser fragmentadas, saca? Lembra d'a gente conversando sobre isso? Têm que ser fragmentadas para que você não escape do "viver precisando de tais coisas". É simples. Acho que você pegou exatamente o que eu disse. Sabe quando assistimos um filme foda, que nos faz pensar muito sobre e depois desenvolvemos muito a idéia na nossa cabeça conversamos, descobrimos coisas, mudamos concepções, percebemos outras coisas, e tal? Então, ai você vai dormir à noite, e no outro dia acorda em um plano MUITO mais baixo de raciocínio, de volta a normalidade, no qual você pode até se lembrar, pode até saber de tudo o que passou na noite anterior, mas não se sentirá do mesmo modo. O sentimento se perdeu. Ocorre a fragmentação. Não conseguimos levar a coisa a diante, sem que haja uma quebra que nos traga de volta para esse poçode paredes altas que é a vida - nossa, que metáfora brega!. Pode ser ate que depois de algum tempo voltemos a ter de novo essas percepções, e teremos sim, várias vezes. Mas haverá também inúmeras outras fragmentações para não deixar que essas coisas continuem consecutivamente. Pronto, pode fragmentar agora.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2007

Ziara

Pelo o amor de deus me mate! Vá com deus, essa é a frase que você sempre diz, sem motivo algum, talvez uma herança familiar, talvez uma. Pelo amor de deus me mate! E eu digo isso com essa voz estribuchada porque você quer que eu tenha essa voz. Mas que diferença faz, leitor? Você só poderá ler minhas palavras, e não ouvir-me. Mas como você acha lindo criar um clima! Oh!, um clima! Como você adora me fazer falar com ele não é? E olha só!, você é bom mesmo! Se podes perceber - realmente, você foi muito bom no uso da segunda pessoa - no paragrafo anterior há um diálogo duplo!, um diálogo duplo! Hablas Duplicata!, - que lingua é essa? ah, não importa! - pois fala-se com o meu amigo que está de frente a mim, e com o meu outro amigo que está dentro de mim. Ou será que fora? Será que fora senão dentro? Dói. Ah, mas dói. Cala a boca. Se dentro, saia! Eu não delego a ti as minhas escolhas. Eu tenho esse direito!, ah, como?, não me faça dizer isso! Eu não tenho direito algum de ter direito algum! Brinquedinho liquido! Onde está o copo? Crudelis! É!, se é assim, pelo menos eu posso reclamar! - é fato que eu posso reclamar pois isso será extremamente bem vindo ao seu drama constante. Me criou para entre-te-lo, mas me tem presa a você! Fará bem a você, é, fará! Ou foi para os outros? Entre-te-lo ou entre-te-los? Ah! Mas você é os outros! Não há muros aqui! Você é os outros! E digo, alguém percebeu sua metáfora do espelho noite passada. Os outros é você na frente do espelho. E, por medo, me faz dizer: Não sei até onde isso tudo é verdade. Como tudo, não é?

domingo, 11 de fevereiro de 2007

Voz

Quanto tempo. Quanto tempo eu tive até agora. Eu não sei, eu não sei mais. Parece-me que tudo o que eu já sou se foi, e nada mais me aguarda no Hall dos Sentimentos Perdidos. O quarto está cheio de gente, vazio de gente. Ah, e como eu sinto falta daqueles tempos; que tempos! É estranho eu não achar estranho esse doer, essa falta. E essa é definitivamente uma palavra estranha, uma palavra estrangeira, pois as pessoas só passam a conhecê-la realmente quando a sentem, por que as verdadeiras palavras são assim, ocultas por debaixo de um pano negro, dificultando sua própria revelação. Que corredor é esse? Essa não pode ser a minha casa. Não, definitivamente não é. Mas eu estou gostando do meu medo.
Quantas palavras eu ainda tenho a descobrir? Eu me melancolizo com isso, a ver que as coisas são definitivamente extensas e enormes. Mas ao mesmo tempo sinto que é isso mesmo, é, que é isso mesmo o que deve ser para ser. Com apenas essa finalidade? Sim, ser. Sir, sem. Que simbiótico. Eu me simbiozo como um gozo e me simbiolizo nesse jogral ao aceitar esse sim e ao ser esse sim.

Vou escrever um dicionário!

Não, não vou mais.

Refuto essa idéia porque os mágicos vieram até mim. Vieram até mim e pediram para que eu parasse com tudo isso, para que eu deixasse isso tudo de lado e fosse embora. Eu não fui. E nem vou. Os mágicos são mágicos. Eu sou uma pessoa. Desestrutura. Que desestrutura mais desértica! O que é isso? Não estou mais só, tenho agora uma pessoa ao meu lado. Não, ao meu lado não; na minha frente. Não há ninguém do meu lado. Nunca houve.

Voz.

São só seus olhos, só seus olhos gordos. E verdes. Largue-me! Estou cansada e nojenta! Ampute meus membros inferiores e me deixe correr livremente por aí, por favor! Você é a única pessoa que poderia fazer isso a mim! Eu lhe peco! Eu lhe peco! Que será então se eu continuar assim?
Quero derreter e me refazer em papel-maché. Para ser um ser frágil e delicado, cor-de-rosa. Não, não disse rosa-choque, não quero; quero rosa claro, clarinho, e leve. Porque é assim que eu gosto das coisas, leves. Drama, drama. Não pense que deixarei você no chão, absurdo! Absurdante. Levante-se. Levante-se! Pare com isso e ande! Ande!
Onde estão os livros? Volte para o corredor amarelado! De que serve perguntar onde estão os livros? Você se recusa escrever um dicionário. Volte para o corredor amarelado! Drama, drama. Derreta, então.
Eu não lhe culpo. Não mesmo. Está cada vez menor. Cada vez
Menor.
Como? Cada vez menor, cada vez menor.
Volte! Porque as frases estão cada vez menores?
Derreta!
Você está derretendo
Meu
Bem.
Quero derreter e me refazer em papel-maché.

sábado, 10 de fevereiro de 2007

Pueva

Meu nome é pequenos gestos. Mas eu digo que eu só tenho esse nome porque você quer que eu o tenha, porque, você além de detalhista, gosta de imprimir às pessoas suas características favoritas. E, logo, deixo de ser uma pessoa e me vejo uma personagem. E uma personagem que não é apenas uma posse, pois você não só me possui, não só me criou, como também eu dependo de você, você que derrama o batom vermelho na minha cara. E então eu questiono, é o “depender” a questão central nisso tudo? Você me cria porque gosta (fique a vontade para substituir esse verbo) que eu dependa de você? Que eu viva para você? Mas talvez haja uma abordagem mais otimista (me expressando assim, até respiro um ar cientificista, mas, perdão, você não quer que eu o tenha, perdão), uma abordagem na qual eu não “dependa” de você, mas sim (e agora eu reservo a mim o direito de trocar o verbo) que eu “complete” você, em uma simbiose intelectual (perdão mais uma vez). Eu gosto mais dessa segunda abordagem, mas não sei se ela é a mais verdadeira, ou se eu realmente gosto mais dessa, porque você pode estar apenas impondo isso a mim. E, mais uma vez, considerando que a segunda abordagem seja verdadeira, impor isso tudo a mim, é impor isso tudo a você mesmo. Porque você gosta. Sim, você gosta e se orgulha. Terminará e lerá e apreciará. E é como se você já soubesse tudo o que eu digo (e você já o sabe), mas mesmo assim enfia essas frases entre meus dentes e se delicia com tudo isso. Vá, vá embora. Deixe-me fumar meu cigarro em paz. Eu sabia que você me faria dizer isso no final disso tudo! Agora procure um título. Meu nome?

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

Mergulho


Estava uma delícia, cenoura era uma delícia. Créock. Mordidas e mais mordidas alaranjadas e bem geladinhas. Deglutições. Créock. Aquele era o almoço e o café do dia anterior. Mastigações. Créock. Créock. Acidente de repente: a cenoura e o talo do dedo receberam a mesma mordida. A unha foi-se. E do alaranjado fez-se o vermelho. Não se assustou, e, logo, deglutiu o pedacinho do alimento e do corpo, que já estavam na boca. Gotinhas vermelhas com vitamina A pingaram no chão. Olhou para as gotas, fechou os lábios e levantou-se do sofá.
Foi até a cozinha, pegou um guardanapo. Voltou até a gota e começou a limpá-la. Então percebeu que seu dedo já havia cicatrizado. E, ali, agachado naquele pedaço de chão feito de mogno e um pouco desgastado, as gotas pareciam ter expandido, estavam com um volume maior. Redobrando o guardanapo tentou limpar. Viu que aquele pedaço de papel estava completamente encharcado. Pegou a barra da camiseta utilizou-a. O líquido manchou o tecido. O líquido caminhava no tecido de fibra em fibra, linha à linha. E logo toda a roupa estava respingando o liquido.
Agora um pouco assustado, correu à cozinha, pegou uma bacia vermelha, encheu com água, pegou um trapo e voltou à sala. A vermelhidão já se arrastava por uma parte do chão. Agachou-se e seus joelhos se coloriram, assim como os cotovelos. Passou a esfregar o pano úmido de água da bacia no mogno encharcado; o líquido e a água passaram a correr com maior velocidade. As mãos ajudavam a espalhas aquele fluido pelas reentrâncias e fendinhas do chão irregular e falho.
Estava ficando desesperado – e cansado. Desenhos iam se formando sobre a madeira conforme o rodo-mão-pano ia passando. E, logo, toda a sala estava banhada pelo vermelho. Ergueu-se, levou as mãos à cabeça, desesperado – os cabelos também se coloriram. Estava em um desespero ofegante; suava um suor salgado que ao respingar encontrava o caráter neutro do liquido no chão. Sua saliva também começara a escorrer, com pequenas borbulhinhas, e ia formando riachinhos pelo corpo ou pelas tiras de roupa vermelha até o chão.
Já estavam todos os moveis coloridos e todos os tapetes submersos pela camada sanguínea. Sangue, sangue, era um fluido sanguoso, não só sangue, era sanguoso e denso.
Olhou para os lados. Percebeu que havia catarro no nariz e lágrimas nos olhos que escorriam freneticamente. Sentiu também o calor nas coxas: era a urina. Sua respiração não mais eliminava gases, mas sim vapores e umidades compostas. Ambiente se dava por úmido e quente, porem ele sentia frio. “Como acabar com tudo isso? Como limpar e retornar?”.
Com as últimas forças das pernas foi até a cozinha, pela última vez, abriu o armário, pegou um pote grande e voltou correndo à sala. Abriu o pote, o que havia no pote? Meteu a mão lá dentro e apanhou um punhado de sal. Atirou o pó branco no chão, por todas as partes, em todos os móveis, e no próprio corpo. Esfregou o sal com as palmas das mãos no rosto, nos braços, nas orelhas, nos narizes. Rapidamente, os animais invadiram a sala: eram os gatos, velhos, sujos e porcos, que passavam a se banhar e se alimentar.
Sentiu-se perdido, rasgou a roupa, ficou nu; espalhou sal por toda a superfície do corpo. Sentiu-se perdido, e viu que havia morrido já há uma semana.

Terminal


Naquele dia ele acordou como se houvesse chupado um limão na noite anterior. E realmente sua boca encontrava-se ácida por demais, seca por demais. Lembrou-se: é perigoso, perigoso ter os lábio desse jeito.
E lá, jogada no sofá, a moça permanecia dormente, na verdade adormecida, conspirando, talvez, em seus sonhos, contra si mesma. Ou não, talvez ela estivesse somente sonhando com algo, porque é sempre com algo que nós sonhamos. Sua saia vermelha bastante curta, manchada de conhaque escuro, porque era desse que ela gostava, estava estática, delineando os contornos e tornos das pernas. Algumas mechas do cabelo, castanho escuro, deitavam sobre o rosto.
O que ele mais queria era saber com o que ela sonhava! Não ousava nem mesmo especular o que viria a ser. E, então, bruscamente ela se ergueu, respirando fundo e rápido. Ela tinha o olhar desorganizado e os lábios derretidos. Levou a mão esquerda à testa e tossiu duas vezes.
-Diga-me, com o que sonhava.
Ela fitou-o diretamente.
-Não sonhei com você, meu amor, fique tranqüilo – respondeu em tom de sarcasmo.
-Diga!
Ela estremeceu, pôs-se de pé. Ela fez o mesmo. Após piscar duas vezes rapidamente, ela disse:
- Sonhei um sonho.
- O que havia nesse sonho?
- ...Sonhei que eu havia morrido. Sonhei que eu mesma não estava no meu sonho.
O homem, assustado, deu um passo para traz. Permaneceu calado. Então, desenhou na face uma expressão de raiva.
- Como você pode?
- Não tive culpa! Não sou eu quem escolhe os meus sonhos!
- Então quem o faz?
Silêncio.
- Eu não tive culpa de sonhar um sonho sem eu mesma! Você não pode me culpar por isso!
- Não lhe culparei, apenas lhe punirei.
- Você não pode fazer isso! Eu já lhe disse! Não escolhi sonhar o que eu sonhei...
- Infelizmente as convenções atuais impedem que você continue viva, e, se eu não lhe matar nesse instante, alguém acabará por fazer o mesmo nos próximos minutos.
- Mas você não me ama?
- Hunf, como eu poderia continuar amando alguém que sonha o que você acabou de sonhar?
A moça chorou altamente, o homem dirigiu-se à cama e lá pegou uma fronha suja. No sofá, a moça soluçava vibrantemente. Com medo.
-Vamos, sente-se direito.
- Não acredito que você terá coragem de fazer isso comigo. Eu entendo que o que fiz é absurdo, mas... eu não quero morrer por isso. Livre-me disso!
- Vou livrar-lhe disso, matando-lhe.
Ela meditou por três minutos. Não era uma meditação fúnebre, e muito menos era o número três o seu número da sorte, mas, dessa vez, ela acertara em cheio:
- Como você pode ter certeza de a obrigação que agora você sente em me matar para me punir não é algo apenas fruto da sua mente?
- Como? – ele não havia entendido.
- Digo, você está certo de suas convicções? Você tem certeza que o que você está preste a fazer é exatamente o que espera-se que você faça nessas situações? Você tem certeza de que isso não é uma criação sua?
- Criação? E eu lá sou algum tipo de artista? – debochou.
- Você terá coragem de me matar mesmo sabendo que você pode estar apenas construindo tudo isso na sua cabecinha de jiló?
Silêncio.
- Nesse exato instante – ela continuou – eu posso estar muito bem sentada aqui do seu lado, nesse sofá, como estou agora, mas, ao invés de discutirmos a minha punição, podemos estar conversando sobre as sete maravilhas do mundo. Sete maravilhas deve ser escrito com iniciais maiúsculas?
- Não, eu acho que não.
- Ah, sim, obrigado. Bom, nós podemos muito bem estar agora tendo uma conversa muito cara aos casais da nossa idade, mas na verdade você pode estar ouvindo e criando e construindo coisas diferentes do que a realidade lhe diz. Você pode estar tendo percepções diferentes.
- Hunf, - debochou mais uma vez – e como você explica o fato de eu estar ouvindo isso de você, de você estar me explicando isso agora, se, na verdade, sou eu quem está criando tudo?
Silencio, porém disfarçado.
- Você pode estar começando a tomar consciência. Você pode estar começando a colocar os olhinhos na fresta da porta de vidro transparente.
- Hunf.
- Então, me diga, terá você coragem de executar-me, sendo que, depois de o fazer meu corpo será encontrado e os detetives não descobriram causa alguma para meu assassinato?
- Como não há causa alguma? Esqueceu-se do que você acabou de sonhar?
- Sim, mas isso é apenas uma criação sua.
- Não posso acreditar nisso apenas porque você alega que eu estou desenhando toda essa situação, isso tudo é muito real para mim. Você é quem está me enganando!
Ela fitou-o firmemente.
- E ainda mais - ele prosseguiu – se você é apenas uma criação minha eu posso muito bem lhe matar, assim como um pintor pode queimar um quadro que não lhe agrada!
- Tsc, tsc. Você não me entendeu. Eu não sou uma criação sua. Você está criando apenas essa situação, esses seus argumentos, as palavras que saem da minha boca, a fronha com a qual você pretende me matar... Nada disso está acontecendo de verdade! Abra los ojos, mon amour! Olhe para o céu que está sobre sua cabeça!
- E por que você acha que eu estou fazendo tudo isso?
- Não sei muito bem, mas posso imaginar que você sente inevitável vontade de me matar.
- Como eu poderia fazer isso? Eu te amo!
Ela percebera como é tênue essa linha que agora pairava na sua frente.
- Sim, você me ama.
- É, eu te amo! – disse ele jogando para longe a fronha suja.
O homem a abraçou firmemente e a beijou longamente. Ela permaneceu quieta, recebendo o carinho do amante. Quieta e séria.
Eles se entreolharam, ele sorriu e disse, se levantando do sofá.
- Vou fazer café!
- Enquanto isso eu vou dar uma volta nas sete maravilhas do mundo, tudo bem?
- Claro, meu amor, mas não demore muito.
A moça dirigiu-se até a porta. Saiu da casa.
Começou a andar pela calçada do seu quarteirão, recebendo na face a brisa gélida da manhã. Ela ainda estava com medo de ser pega. E foi no exato momento em que ela se lembrou do seu temor que ouviu as vozes e os passos de uma multidão correndo atrás de si:
“Peguem-na! Ela é a moça que sonhou que estava morta! Vamos todos puni-la!”

Tecidos do Amor


O casal estava deitado. Deitado em uma cama muito bem acolchoada e fofa. Sorriam por trás de suas taças de vinho vermelho. Vinho, vermelho. Ambos seminus, tinham como assunto o próprio relacionamento.
-Eu te amo.
-Eu também te amo.
-Que bom.
A Outra riu belamente. Ela realmente era inteiramente bela. Desde seus lábios de mel até sua pele de pêssego. O ar do local carregava um odor extremamente agradável e sutil: uma combinação de jasmim com ervas indianas. A iluminação do local também favorecia a cena romântica: as cortinas coloriam a pouca luz que adentrava no recinto de vermelho e os abajures davam um tom rosado às paredes.
O Outro também tinha sua beleza. E era um modo de ser belo muito tradicional, jovem, um porte masculino, uma pose de protetor, uma voz de galanteador. Era com ele que elas sonhavam, era para ele que elas suspiravam. Todos os cavalos queriam ter como domador aquele homem.
-Ó, não compreendo como pude sobreviver até o dia de hoje sem ter te conhecido antes!
-Posso também dizer que você é, sem sombra alguma de dúvida, minha alma gêmea, meu coração que me falta.
-Você vai morar no meu coração para todo o sempre.
E se beijaram e se abraçaram. A Outra estendeu levemente seu braço e puxou para perto de si uma bela caixa de chocolates. Deliciou-se com os doces e levou alguns à boca do homem. Que delícia!
Então, o Outro sorriu mais uma vez para ela, e pediu que ela aguardasse por um instante. Ele se levantou da cama, deixando a taça de vinho vermelho sobre o criado mudo de mogno muito bem lustrado. Em pé, ele colocou a mão no bolso do robe de seda azul e de lá tirou uma pequena caixinha de veludo, quadrada. A Outra sorriu deliciosamente quando viu o objeto nas mãos do homem. Ela estava muito feliz com o momento, afinal era exatamente como ela havia sempre sonhado: era o local certo com a pessoa adequada. Que maravilha!
E foi aí que o homem abriu a caixinha de veludo e a moça pôde ver que lá havia algo com o qual ela sempre sonhara. Sim, sim. Foi aí que ela viu que lá dentro havia um fiapo de cabelo sujo.
Ela vibrou em êxtase. Êxtase total. Ergueu-se da cama e tomou das mãos do homem o fiapo de cabelo. Com um frasco de cola superbonder, que estava sobre o criado mudo ao lado da taça de vinho do homem, ela colou o fiapo na narina esquerda e gargalhou:
-Me diga como fiquei.
O Outro riu.
Então, foi aí que ele começou a dançar um sapateado irlandês sorrindo demasiadamente, até rasgar as bochechas.
-Ah, me cansei. – disse ele com um olhar de desanimo.
Enquanto ele começava a vestir sua roupa de couro vermelho, ela se dirigiu à janela do quarto. Debruçou-se no parapeito e passou a observar. No hotel à frente, viu em uma janela uma pessoa nua, parada em frente à janela, como se olhasse para algum ponto distante. Essa pessoa segurava uma almofada de tecido crepe em frente cara. E não passou disso, foi só isso o que ela viu pela janela.
-Estou indo embora, se você ainda não percebeu. – disse o Outro calçando sua bota de camurça.
-Tudo bem.
-Sua ridícula! Como tem coragem de me deixar ir assim, sua vadia! Eu não significo nada pra você mesmo, né, filha da puta!
-Você se esquece que é apenas a outra, apenas a outra pessoa. E digo outra com letra minúscula.
-Hunf...
-Por que na vida é assim mesmo, meu bem. Ou você é, ou você é a outra, ou o outro.
-Eu não entendo como pode ser assim. Realmente não entendo.
-Lembra daquele lápis que eu te dei de aniversário, pois é, eu o tinha achado na rua, e inventei aquela história mágica para te encantar, pra te fazer feliz.
“História Mágica:
Era uma vez um rei muito rico em seu castelo mágico, num país muito distante e mágico, com seus parentes mágicos e com suas roupas mágicas. Um dia ele percebeu que sentia necessidade de fazer duas coisas: escrever contos mágicos e matar uma pessoa. Foi aí que ele pediu ao encarregado de suprir todas as necessidades do rei, por que todas elas devem ser supridas, um lápis. Então, ele tirou da sua gaveta favorita um rifle 147, colocou o lápis no interior do cano da arma e mandou chamar sua mãe. Quando ela chegou ao recinto, ele disse ‘Mamãe, me traga um copo d’água, por favor’, ‘Sim, filho querido’. Então ele mirou pela janela e atirou com o rifle 147. e foi aí que o lápis foi cair no meio da rua, no exato momento em que uma bela moça passava por lá. E eles viveram felizes para sempre. Fim.”
Então ele começou a chorar, intensamente. O leitor sabe muito bem o que está passando na cabecinha dessa personagem.
-É isso o que você é, meu bem, apenas uma outra pessoa que vai se perder no tempo, que vai se diluir num frasco de vinagre, que vai derreter no deserto sozinho!
O Outro, e agora fazendo jus ao nome, ficou calado e sério. Muito sério, ponderando sobre suas próprias ações. Depois de uns minutos, os quais a Outra ficou a fitar-lhe, ele disse:
-Sabe, eu acho que hoje fiz a melhor coisa da minha vida.
-Ah, lá vem bobagem.
-É, porque hoje eu envenenei os chocolates que acabamos de comer.
A Outra arregalou os olhos como já era de se esperar, gritou de medo puro, como já era de se esperar, e começou a se contorcer, sob o efeito do chocolate, como já era de se esperar. E logo ele também começou a se contorcer, e logo ambos já estavam se contorcendo no chão com as mãos segurando os próprios pescoços que pareciam querer pular para fora dos corpos.
E lá estavam eles, doendo e agonizando. E foi aí que as bocas se uniram e eles derem um ultimo beijo, de leve, bonito.
E foi aí que eles morreram felizes para sempre.

Blanche

Pois, afinal, por mais delicado que seja o fio, a lã esteve outrora no lombo de uma ovelha e nunca deixará de ser ovelha. Porque isso não era mais necessário, nem mesmo desejado. Cami ainda gostava de pensar sobre isso, quando observava o tipo tecido que compunha belamente seu vestido claro. Passava os dedinhos leves pela roupa. Estava perdidamente feliz, estava perdidamente perdida.
Todos querem o bem, todos reclamam o bem. Ela também. Mas reclamava gritando, como todos os outros, mas queria berrando, como todos os outros, voltada para uma parede branca, lisa, inócua, linear, com os braços largados ao lado do corpo. Mas Cami era acompanhada de pulseiras, de várias cores. Mas ela não via as cores, ela era daltônica como uma espanhola muda e seca.
Gemia, com o queixo caído, babando aos poucos e devagar, deixando sua língua ressecar, sua goela se perder e se contorcer. Fazia movimentos vagarosos, aquosos e delicados: era uma dama. Cami, venha até aqui. Voooooooo. E assim ela vinha, passo a passo.
Cami não tinha músculos na face. Nem mesmo nas pálpebras. Ela se irritava de sentir o vento roçando-lhe a pele e os cabelos, sentia-se cansada e derretida. Derretendo-se cada vez mais. Cada vez mais. Até cair no sono...
...
No sono profundo...
...
...E acordar.
Levantou da cama, chutou as chinelas para longe, deu cinco saltos, sorriu violentamente até rasgar as bochechas, puxou os cabelos para trás, deu sete gritos, rebolou, bateu palmas, rodopiou, piou, correu, foi até a rua, olhou para os lados, bagunçou os cabelos, correu, deu cambalhotas, pulou oito vezes, correu, chutou o meio fio, subiu na arvore, C
A
I
U da árvore, gemeu progressivamente, reclamou, levantou-se, remexeu-se, dançou, pulou, correu, rodou, fez careta para o cachorro, mostrou o dedo mindinho para a velha, mostrou a língua para o velho, beijou o muro, lambeu a rua, esfregou-se no asfalto, comeu cascas de árvore, suou sobre folhas, tropeçou e foi ao chão.
Voltou para casa com a cabeça cheia de completitudes vazias. Sentia-se completa, havia feito muito. Foi à seu quarto, olhou-se no espelho. Estava imensa. Estava gOrda, muito gOrda. Tinha banhas, tinhas rugas, tinha sobras, tinha bundas, tinhas aças, tinha vacas em si mesma.
Olhou, desesperada, para o criado-mudo que estava a gritar-lhe o nome. Cami, Cami! Viu, sim ela viu, todos os seus dedinhos

Purée de Batatas (ou de ar)

(e foi exatamente o meu leitor que nem reparou a falta de uma letra "e" no último parágrafo. Ou até mesmo nem haja necessidade em reparar. Ou não.)
Para ela nada mais serviria. Disseram-lhe que morrer deveria ser bastante elegante, bastante diverso. Mas disseram-lhe que doía. E ninguém quer doer na hora da morte. Mas ele queria. Queria muito. Não adiantava, para ele, morrer sem sentir dor. Libertação, como se essa dor, tão forte seria, tão bruta agiria, tão intensa mataria, servisse para quebrar tudo o que fora construído. Se é que construímos algo.Mas não havia garantias, nenhuma. Por que do lado de lá, ah!, do lado de lá não sabemos o que há. Ou sabemos? Bata na porta de madeira e, sem abrí-la, invada-a com seus pensamentos. Ou fique lá mesmo, do lado de fora, quieto, pensando e imaculando e temendo e gemendo, demente.Talvez todos as respostas estejam erradas, talvez todos os queres sejam alterados, talvez nada do que se possa proferir realmente diga algo que é por ser apenas, ou seja, que é verdade. Ou talvez não. Talvez haja sim, especulações verdadeiras, verdades absolutas, e absolutidões do pano negro.E é assim que a prisão vira liberdade e a liberdade vira prisão, nas nossas palavras tão conceptas e tácitas (não mais). Num ciclo, no qual - até mesmo depositar confiança de liberdade em algo vira uma prisão, uma limitação;até mesmo querer escapar seja prender-se;até mesmo estar preso pode ser a mais livre liberdade incrita em uma elipse torta;até mesmo crer no ciclo seja prender-se e perder-se e prender-se e perder-se e prender-se e perder-se e prender-se e perder-se e prender-se e perder-se e prender-se e perder-se e prender-se e perder-se e prender-se e perder-se e prender-se e perder-se e prender-se e perder-se e prender-se e perder-se e prender-se e perder-se prender-se e perder-se e prender-se e perder-se e prender-se e perder-se e prender-se e perder-se. Ou não.

Pursuit


Havia um telefone no quarto escuro. O carpete do chão recebeu a pressão oriunda do salto da scarpin de couro rosado. Caminhou até a mesa de mogno escuro. As unhas longas estalaram as entrarem em contato com o plástico do telefone vermelho. O ambiente escuro esfriava o ar e coloria de cores diferentes os diversos objetos que lá havia.
- Alô.
- Alô? Carmem está?
- Quem fala?
A outra pessoa não respondeu. A mulher das unhas consertou as mechas do cabelo liso que se encontravam fora da posição normal.
- Carmem está? – repetiu a pergunta.
- Não, ela não está aqui – respondeu e aguardou alguns instantes até o ar pairante começar a deitar no chão – Ela está morta, você não sabia disso? É sim, acidente cardíaco.
Do outro lado da linha, ouviu-se um estalo; alguém batia a porta. A maçaneta girou nas mãos da outra pessoa. A luz pálida do corredor invadiu o quarto fechado. Do outro lado da porta estava o homem.
- Convide-me para entrar.
- Entre.
A porta fechou-se nas mãos do homem.
- Com quem você estava a falar no telefone?
- Eu não estava no telefone.
- Eu lhe ouvi.
- Eu também ouvi quando você bateu a minha porta.
O homem cruzou os braços; A outra pessoa levou a mão ao queixo
- Você estava falando com Carmem?
- Com quem?
- Com Carmem.
- Não. Você estava falando com Carmem.
A outra pessoa moveu seu corpo até a mesa; o homem aproximou-se vagarosamente, como se quisesse sentir a crescente energia da aproximação daqueles dois corpos.
- O que você está fazendo?
- Você gosta de toda essa proximidade?
Então foi aí que os dois se beijaram. Profundamente, como em uma profusão que era capaz de transmitir muito mais do que movimento. E foi um beijo longo: de início, toques simples e leves, que iam se transformando em invasões, penetrações, deglutições; e logo já eram só um, colados e derretidos.
- Que bom ter você de novo comigo.
- Quem disse que eu estou de novo com você?
- Eu sei que você me ama, eu sei que você ainda me deseja.
- Onde está Carmem?
- Foi você quem falou com ela por último, já disse.
O homem afastou-se da outra pessoa. Foi até o balcão da cozinha do tipo americana, enfiou a mão direita no bolso da camisa e tirou de lá um maço de cigarros. Levou um deles a boca. Não acendeu. A outra pessoa contorceu.
- Você disse que iria procurar por Carmem.
- E eu procurei.
- Encontrou?
Ambos ficaram em um silencio que aguardava pacientemente a resposta, como que sentado em uma saleta de espera preenchendo palavras-cruzadas calmamente.
- Sim, encontrei. Mas nunca lhe direi onde ela está.
- Por que? Eu procuro Carmem há semanas!
- Por que você quer mata-la.
- O quê?
- Sim, você sempre temeu uma aproximação entre ela e eu. Nunca aceitou nossa relação, e, agora, com o seu amor declarado por mim, você não a deixará em paz nunca! Ciúmes, conhece essa palavra? Mas saiba que não sou de ninguém. Nem mesmo de você.
- Eu estou começando a achar que você matou Carmem.
- Que absurdo! Não vivemos em um filme surrealista!
- Você tinha inúmeros motivos para faze-lo.
- Mas não fiz! Eu não a matei. Você deseja que eu já a tivesse matado para poupar-lhe o trabalho, não?
- Você já a matou.
- Não! Não a matei! Você não pode acusar-me de uma coisa dessas.
- Ora, ora... Carmem tinha tudo que você sempre quis. Ela era o que você sempre quis ser. Até mesmo nome, ah! Carmem, te fascina.
- Eu a conhecia muitíssimo bem, e livro-me de idealizações.
- Mas não se livra da culpa de te-la matado!
- Acorde, meu bem! Eu amava aquela mulher! Dói seus ouvidos? Dói? Sim, eu amava aquela mulher! Ouviu, benzinho?
Ambos estavam parados. Até que um deles mudou a expressão, saindo de comoção e dor para iluminação, franzindo o cenho. Quebrara a charada.
- Você disse amava?
Silêncio.
- Sim! Carmem está morta! Está definitivamente morta! – berrou começando a chorar.
- Eu já sabia disso, descobri isso hoje mesmo. Queria ver por quanto tempo você me enganaria e esconderia isso de mim. – disse calma e seriamente, ponderando sobre o fato que agora se tornava mais claro e real em sua mente.
Os braços se cruzaram, algumas lágrimas molharam o tapete, as mãos esconderam as bocas. Eles se entreolharam firmemente, como que se quisessem perguntar algo um para o outro.
- Diga-me... Foi você quem a matou?
- Eu nunca seria capaz de fazer isso, um crime desses, que horror.
- Ah, por favor! Você tem uma mente mais insana do que Marques de Sade! Basta lembrar-se das sujeiras que você fazia com aquela mulher. Como vocês conseguiam suportar tamanho nojo de todas aquelas ações? Porquice sem tamanho!
- Tem gente que gosta! Para você aquelas coisas não são normais... Aliás, só o que você faz é que você crê ser normal!
- Você sabe que eu quero você para mim!
- Isso não importa mais! Carmem está morta! E o que eu sentia por você também está morto!
- Responda! Você matou Carmem?
O silencio fez-se mais uma vez. O pequeno feixe de luz que invadia a fresta de baixo da porta deixou de existir. As paredes ouviam atentamente a conversa, mas sem muito entender o que ocorria, pois não tinham olhos.
- Então eu direi-lhe a verdade! Fui eu mesmo quem matou Carmem! Agüente tudo isso agora! Você adora jogos verdes, não?
As duas pessoas se atarracaram e se debateram. Parecia que aquele ódio, das duas partes, não havia sido programado para terminar. E, depois da violência diminuta, veio o choro.
- Vamos! – disse bruscamente agarrando as chaves – Vamos! Temos coisas a tratar com uma certa pessoa.
O homem e a outra pessoa saíram do recinto, trancando a porta. Pegaram o carro. Foram até outro apartamento. Bateram na porta. Bateram de novo. A porta abriu revelando um ambiente também escurecido pela falta de luz noturna.
- Ah, eu já esperava a visita de vocês – disse a mulher das unhas – Venham, cheries.
Os outros dois permaneciam muito sérios. A outra pessoa, depois de assistir o homem sentar-se no sofá, dirigiu-se até a mulher das unhas e beijo-a.
O homem achou aquilo estranho, deveras estranho. Não era uma atitude esperada da parte da outra pessoa. A mulher das unhas sorriu feiamente – seus sorrisos eram todos feios – após o beijo. Ela depositou as ultimas cinzas da cigarrilha sobre um balcão e virou-se às duas pessoas.
- E vou logo dizendo o que vocês querem saber... Fui eu quem matou Carmem. – exclamou a mulher das unhas.
O homem e a outra pessoa se entreolharam sem entenderem coisa alguma.
- Sim, sim. Depois de tudo que aquela mulher me fez, depois de tudo que ela fez às nossas vidas... Eu não suportaria deixa-la viva e andando por aí.
Um ponto de interrogação gigante havia chegado ao recinto. A mulher das unhas percebeu o desentendimento e completou.
- O que está a ocorrer? – perguntou ao homem e à outra pessoa.
O homem começou a ficar nervoso. A outra pessoa ficou desnorteada.
- Não há necessidade de mentir. Eu já afirmei que fui e quem a matou.
O telefone vermelho tocou mais uma vez. Alguém se dirigiu até ele e o atendeu.
- Pois não? – escutou o que a pessoa do outro lado havia a dizer, e depois, escondendo o bocal do telefone, disse às outras pessoas que estavam sentadas na sala – É Carmem.
Uma outra pessoa levantou-se do sofá e tomou o telefone para si. Pôs no ouvido.
- Você está mentindo! Não há ninguém na linha! O que é? Você prefere que ela esteja viva, apenas desaparecida?
- Eu não estou mentindo, era ela! Tenho certeza! Não tenho motivos para mentir!
- Não acredito.
- Também não.
- Então estamos todos mentindo.

Xadrez Geléia


E já era somente o adversário daquele jogo, e tinha a sua frente somente o do chapéu-coco, e entre eles, apenas o tabuleiro daquele jogo monocromático. Sim, tudo era somente isso, mas agora ele sabia que poderia moldar, ou melhor, que poderia não precisar moldar as coisas, que poderia tentar abstrair-se o máximo possível e fugir daquilo tudo. O do chapéu-coco ergueu uma sobrancelha, tinha os braços apoiados na mesa firmemente e confiosamente, mas também como se tivesse medo de cair da cadeira. O adversário queria poder girar os olhos, a fim de ver tudo de ponta cabeça.
Então ele percebeu que tudo não passava de uma geléia, uma grande geléia colorida e disforme, que aos muitos poucos instantes de toda a vida, é reduzido e modulado e moldado e adequado e formado nas formas que conhecemos. Tesoura de jardim e cerquinha de madeira. Você está achando que foi muito rápido?
Racionalidade. Bendito seja esse código de leis derivado da puríssima e perfeitíssima constituição dos sentidos. Era assim, e se assim o era, o adversário se viu ali naquela cadeira almofadada desejando ver um ponto, e só um ponto, e nele poder ser sugado, ou talvez invadí-lo, ou ser evadido por ele mesmo, em uma mescla de sentidos imperfeitos que aos poucos ficam sendo jogados de lado, no meio-fio, na lixeira, para trás.
Era tudo uma questão de passividade. O homem não cria leis, códigos, fórmulas, linguagens. Ele apenas as adapta, as capta no ar, segundo suas observações e anotações. Logo, não é a natureza passiva, que deita sobre uma maca de consultório e recebe cutucadas, que é auscultada, que é revisada, passivamente. Não, não é assim. É só o homem, talvez o próprio adversário, até esse dia, talvez qualquer um, que mergulha por entre um ambiente de fluidos viscosos e de lá retira suas observações, todas elas limitadas por seu reduzido campo de visão atmosférico e palpebriano e orgânico e adocicado e semi-ultramagnetico. Era tudo uma questão de passividade e de adaptação.
Era como uma cerca, ou então como uma tesoura de jardinagem, uma que delimita e separa, a outra que poda restringe. Puta merda! Que puta coisa! E de repente já era uma maçã que caia rolando e rolando, passivamente. Ou então, já era uma maçã que se cansava de ali estar dependurada na árvore e tomava a decisão de desligar-se dela, de pousar, pousar, no chão, de sair correndo, talvez se esconder no verde, talvez pular alguns objetos humanos que estiverem no seu caminho.
Quebras são legais. Desde quando o natural se tornara tão imperativo? O natural era só o imperador; O imperador, perdão. Essas coisas são difíceis de serem ditas, mas o adversário, naquele instante, que me recuso em classificar como mágico apesar da adequação, percebera que nunca antes havia percebido aquilo. E agora, com um simples movimento de uma peça, com um simples olharzinho obliquo, com uns certos dizeres aleatórios – ou até mesmo com imensas gargalhadas em background que não impediam o que estava acontecendo – ele percebera. Havia entendimento.
Não havia entendimento. Era contra as regras. Estava passando daquela linhazinha desenhada no chão que delimitava – oh bela função das linhas! – o permitido do proibido. E foi assim mesmo que o adversário sentiu-se sugado para dentro daquele redemoinho circular. Foi como um clique, um estalo, só que sem som algum. E o do chapéu-coco transformou-se em anfitrião, um anfitrião que assiste apenas, e sabe exatamente o que se passa na cabeça dos seus convidados. Havia agora percebido o ocorrido, havia dado conta de que isso sempre fora algo que estava logo ali, parado, ou pairando, esperando que alguém viesse e visse a coisa e acenasse. E assim essa coisa mantinha sua existência.
- Vamos. Sua vez – insistiu o do chapéu-coco naturalmente.
O adversário achou estranho aquele movimento estranho.
O do chapéu-coco moveu o antebraço. Apanhou o peão que estava aguardando cochilando na parede do tabuleiro e avançou, na diagonal, oito espaços, atingindo a casa em que estava o rei preto, derrubando-o.
O jogo era o Xadrez. De peças pretas e de peças brancas que dançavam em um tabuleiro ordenado. E, de cada lado da mesa, um jogador dostoievskiano; calados, um com as mãos fazendo suporte ao queixo, o outro, de braços cruzados esperando a próxima jogada. Aquilo tudo era um confronto, dos mais simples, dos mais sutis, dos mais importantes, dos mais profundos, dos mais obsequiáveis, dos mais valorosos. Era um confronto no qual as coisas estavam sobre a mesa; e a mesa, não estava de cabeça para baixo. Isso mesmo, de cabeça para baixo.

Asas de gaivota, a expectativa e a poesia romântica


Estava caminhando na rua do amor
Quando a vi na janela
Tinha uns lábios de mel
E asas de Gaivota

Ela havia chegado
duma peça de teatro
estava fantasiada; era o pássaro com bolotas

Me aproximei-me dela mesma, quis
beijá-la
mas seus lábios gotejavam pingos
de mel

O Parapeito da janela era de madeira e para lá iam
as formigas
para comer o mel amarelo
Ela estende os dedos; pega uma delas, e leva
à bocarra
a mastiga, bochecha com o inseto
Solta um grito, leva a mão a boca e tira um dente.

Move o olho do céu azul para meu rosto
arre-ga-la-os
Ôôôôôôô!Sua cabeça girava! Quantas dúvidas e problemas! Ser ou não...?
Sua cabeça girava! estava como clarice. Sua cabeça girava!
E seu pescoço doía.

Conspiração


Eram três amigos sentados em uma mesa de madeira em uma quente noite de verão. Estavam em um galpão-salão escuro e vazio. De iluminação só havia uma luminária que pendia sobre a mesa e que coloria o ambiente de vermelho. Os três rapazes trajavam roupas bastante comuns logo não preciso descreve-los. Ademais, eles jogavam poker.
A mesa quadrada estava coberta por um forro de feltro verde, e, sobre esse, estavam dispostas as cartas, acompanhadas de copos e de uma garrafa de conhaque, e também de um cinzeiro recheado de pitucas de charutos. Imagino que já tenha desenhado em sua mente que o ambiente estava envolto pela fumaça proveniente do fumo. Os jovens estavam bastante desenvoltos e animados.
- Caralho! Você não pode ter vencido de novo, número 1! – exaltou-se o da boina.
- Isso é impossível! – berrou o da barba rala.
- Sou bom por natureza. – justificou o número 1, espreguiçando-se na cadeira.
O da boina olhava fixamente para uma região do galpão fora do raio da luz vermelha. Ele havia percebido a aproximação de uma garota, provavelmente de uns 9 anos, vestida com um sensual vestido vermelho, com um andar rebolante e uma expressão tentadora.
- Quem é ela? – perguntou o da boina. Os outros dois ao verem a menina, se assustaram, e repetiram a mesma pergunta.
A garota chagou até a mesa em que os rapazes encontravam-se sentados. Eles se entreolharam, incompreendidos. A garota fitou cada um deles diretamente. A fumaça dos charutos sentiu-se cansada de pairar no ar. A menina, agilmente, tirou um pequenino cachorro muito pouco peludo de dentro do decote dos seios, levou-o à boca e o engoliu – após mastigar, é claro. Então, ela caiu em cima da mesa definitivamente morta.
Os rapazes estavam completamente estáticos. Tinham os olhos arregalados e o pavor cutucava os seus ombros irritantemente.
De súbito, todos os 3 começaram a rir descarada e hipnoticamente. As gargalhadas rolaram soltas como que descendo de uma colina verde; o riso preencheu o lugar. A menina despertou da morte e levantou-se da mesa; o cachorrinho saiu de dentro de sua boca e começou a brincar com as cartas do baralho. A garota também ria altamente. Até mesmo o animalzinho parecia estar rindo.
- Que idiotice! Onde já se viu! Que cena mais sem lógica! – disse o numero 1, ainda rindo.
- Só em um conto babaca mesmo que isso poderia acontecer! – completou a menina.
- Até parece que uma garotinha de 9 anos vestiria um vestido desse, andaria rebolando e ainda engoliria um cachorro vivo! – debochou o da barba rala.
- É mesmo, minha personagem é a mais mau construída de todas! Ridícula! – corresponde ela.
- Isso só pode ser idéia de um escritor bobo que não sabe e nem tem sobre o que escrever! – disse o da boina.
- Realmente, esse escritor é um tonto! – todos os outros concordaram.
- Hei! Narrador! O que você acha desse autorzinho? – perguntou a menina.
Eu acho que lê é um babaca completo! Impactantemente abastado! Fico até constrangido de ter que narrar os fatos absurdos que ele põe na minha boca!
Todos riram, inclusive eu.
Contudo, de repente, o da boina engasgou-se com o riso, perdeu o fôlego e morreu brevemente. Os outros se assustaram. E, quando o da barba rala levantou-se da cadeira para tentar socorre-lo, tropeçou no pé da mesa, caiu bruscamente batendo a nuca na quina da mesa. Foi ao chão desfalecido.
- Oh! O autor está nos matando! – gritou a menina enlouquecida em seu desespero.
- Ah não! O que vamos fazer? – perguntou o número 1 – Narrador! Nos ajude!
Não posso fazer nada! Parece que o autor está enlouquecidamente nervoso! Ele matará a todos!
Então, o cachorro pulou em cima da garota e começou a devorar seu peito. Comeu a carne dela até o fundo do peito, até o coração, fazendo-a gritar e acabando por mata-la.
- Não! – desesperou-se o número 1.
Corra, número 1!
Mas não adiantava mais. Uma dor violenta consumiu a face do número 1, e, então ele percebeu que não tinha mais nariz nem boca. Ele debateu-se sem conseguir respirar, até morrer.

Ascensão

Estava parado. Porém ainda vibrava. O branco denso e vazio reluzia sobre a fina retina aquosa de seus olhos cálidos. Músculos estáticos. Mente em movimento. Dores, pensamento. Queixo com movimentos periódicos se ocupava de consumir a pouca energia restante. Pensar... pensava. Nada mais.

Telhado. Braços abertos. Chão pintado de buracos-negros. Espirais. Nuvens. Cores? não. Tudo liso, nada encoberto. Pele clara, luz que penetra. Nariz erguido de pálpebras desenroladas. Dedos fluidos, varetas; não rígidas nem tensas, mas sim leves e brandas.
Olhos enxergam, agora abertos. Cai lentamente uma folha, de vidro. De onde vem? Por que cai? Leve, calma e constante. Constante. Bela? constante! Alegre? só se quiserem. Para junto ao chão. Chão-sustentação. Olhos-rastros movem, miram a folhinha cristalina. Joelho também vê. Quer ir ao encontro dela. Pernas que se curvam, músculos que se contraem. Pele e vidro. Sangue. Sangue caminhando. Sangue-mercúrio. A morbidez da lentidão preenche os espaços vazios do tempo. Marcas e rastros espalhados pelo chão. Um caminho, atalho. Até a porta. Fresta, sim aquele líquido passa pela fresta. Andar de baixo? Por favor.

Sala. É do verde que o onde fala. Folícula plasmada. Vaga, vago, vavelhado com orvalho de gotas de sabor de essência de tons do profundo. Luz vespada traspassa janelas vitrais cingidas. Caules virgens, clorofilados. Clorofilamentos. Umidade nos poros do ar, que não se move, estático. A Pausa é a rainha. Chão de água e vento. Cores. Pensares. Folhas tênues, novas e molhadas.
Passo dado. Espirra, a, poça, e, respinga, de, pingo, a, pingo. É verde! E os vórtices! Ah, os vórtices! Que mágicos! Vene. A tangência da brisa ventaica gileteia uma epiderme – é morna, tenra e calcusa.
Musgo esgueiradeiro, dilaptérico – é tinta. O bafo, que bafo que és. È bafo, fuso e confuso, dores de tempo, opresso ao regresso, permissões, assuntamentos. Invasora, que aquece aqüejando de molhos. Cabelos verdes, que idéias, looongas porém incompletas, com folhas, de onde? De onde? Daqui.
Inclinação do cerne encefólico, mira olhandonhava, na poça verde, no chão-sustentação. Dedo alongamentandolonguejandoaolonge. Toca com o toque fino, delicatus. Porta deslizando em ângulos fazendo o mover nascer. Mais uma vez, para baixo? Sim, por favor.

Porão. Escuro o breu se faz na força luminosa que existe. Rastros de sombra e som. Som, o som. Gironde-girando ao sonar ruídico. Ouvido, sim já os possuía; o uso, não o fizera. E os olhos, as janelas de entrada? No escuro-brêiuco são úteis ao passageiro, por que não?...?. Decidiu abrir os olhos mas percebeu que estava sem pálpebras; já os abrira antes. Não, não via isso, onde estava isso? Que era, se é que era?
Lá estava, mergulhada na madeira a escada do espaço. Mãos tremidas de shaquem, do toque, to to to (quer?) to que. De degraus por degraus, ao erguer ao combinar, reverter, progamar, ter desfazer, prometer e cumprir. Sem ditos. Ao topo escadeiro, o corpo é cruz de braços, os pés-pontas. Suspiro e respiro, num fluxo e refluxo da constância de sua própria divindade. E o pulo.

A Caneca de Chá

A cadeira de madeira rangeu quando ele se acomodou e apoiou os cotovelos sobre a mesa pensando sobre o que estava fazendo. Fitava os papéis esparramados e em uma harmônica desorganização - pois era assim que ele se sentia bem. Usou os polegares para massagearem as têmporas e percebeu que estava com dores de cabeça. Voltou a calçar as pantufas quentes e confortáveis, pegou uma caneca de porcelana preta sobre a superfície da mesa e se levantou. Dirigiu-se até a janela de mogno. Mogno maldito!, pensou relembrando o preço que pagara por aquela madeira na construção da casa e observando, agora, as rachaduras que a peça apresentava.
Erguendo a mão esquerda até a face roçou a barba crescida. Murmurou algo e não percebeu o que disse. Andou automaticamente até o sofá de veludo desbotado e se esparramou sobre ele tomando cuidado para não derramar o chá da caneca. Não conseguiu: o conteúdo vibrou e algumas gotas caíram no chão, sobre o tapete de palha envelhecida. Observou a cerâmica escura e se lembrou de sua origem. Ganhou aquela caneca, quando completara oito anos, de sua mãe. Cansou-se de olha-la e no mesmo instante colocou-a sobre o criado mudo.
O dia estava escuro. Inclinando o corpo sobre o estofado apoiou o pescoço no braço do sofá, dirigindo o olhar para o teto. Fechou os olhos e começou a descansar. Um barulho seco e penetrante atingiu seus ouvidos, repetidas vezes. Pôs-se de pé, Aquelas crianças malditas de novo!, andou até a janela e, usando a manga comprida da blusa, esfregou os pulsos contra o vidro a fim de retirar-lhe a umidade do embaçado. Como estava no segundo andar de seu chalé, olhou para baixo e viu dois garotos, de pouco mais que sete anos, apanharem pequenos pedregulhos na grama e arremessarem-nos contra a janela de mogno.
Franzindo o cenho virou-se e observou o cômodo. Reparou, sobre a mesa junto com seus papéis, um pequeno prato com algumas fatias de queijo e um canivete que reluzia com a sua lamina a mostra. Com paços firmes caminhou até a mesa e pegou o canivete, e, dois segundos depois estava de volta à janela. Abriu-a. A pele de seu pescoço arrepiou quando a primeira briza gélida daquela manhã entrou no quarto. Os garotos arregalaram os olhos quando o viram, e ele, segurando a lâmina do canivete, disparou-o na direção de um dos pivetes. A criança caiu no chão, e, a grama a sua volta tingiu-se de vermelho.

A luz do sol o acordara. O pequenino estava deitado em sua cama embaixo de um cobertor colorido. Ao abrir os olhos via uma caneca de chá de porcelana preta sobre uma mesinha de apoio. Observou a janela entreaberta, e reparou que seu amiguinho acenava do lado de fora o chamando. Ele se levantou, calçou seu sapatinho, pulou a janela e foi ao encontro do seu coleguinha. Os dois saíram correndo pela vizinhança, de quintal em quintal até chegarem em frete a um chalé. O garoto fitou a construção e, curvando-se, apanhou uma pedra sobre a grama atirou-a contra a janela de mogno do segundo andar.

Persuasio falsa

Tudo novo.
Tudo perdido, mais uma vez.
Est persuasio falsa.