quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

Mergulho


Estava uma delícia, cenoura era uma delícia. Créock. Mordidas e mais mordidas alaranjadas e bem geladinhas. Deglutições. Créock. Aquele era o almoço e o café do dia anterior. Mastigações. Créock. Créock. Acidente de repente: a cenoura e o talo do dedo receberam a mesma mordida. A unha foi-se. E do alaranjado fez-se o vermelho. Não se assustou, e, logo, deglutiu o pedacinho do alimento e do corpo, que já estavam na boca. Gotinhas vermelhas com vitamina A pingaram no chão. Olhou para as gotas, fechou os lábios e levantou-se do sofá.
Foi até a cozinha, pegou um guardanapo. Voltou até a gota e começou a limpá-la. Então percebeu que seu dedo já havia cicatrizado. E, ali, agachado naquele pedaço de chão feito de mogno e um pouco desgastado, as gotas pareciam ter expandido, estavam com um volume maior. Redobrando o guardanapo tentou limpar. Viu que aquele pedaço de papel estava completamente encharcado. Pegou a barra da camiseta utilizou-a. O líquido manchou o tecido. O líquido caminhava no tecido de fibra em fibra, linha à linha. E logo toda a roupa estava respingando o liquido.
Agora um pouco assustado, correu à cozinha, pegou uma bacia vermelha, encheu com água, pegou um trapo e voltou à sala. A vermelhidão já se arrastava por uma parte do chão. Agachou-se e seus joelhos se coloriram, assim como os cotovelos. Passou a esfregar o pano úmido de água da bacia no mogno encharcado; o líquido e a água passaram a correr com maior velocidade. As mãos ajudavam a espalhas aquele fluido pelas reentrâncias e fendinhas do chão irregular e falho.
Estava ficando desesperado – e cansado. Desenhos iam se formando sobre a madeira conforme o rodo-mão-pano ia passando. E, logo, toda a sala estava banhada pelo vermelho. Ergueu-se, levou as mãos à cabeça, desesperado – os cabelos também se coloriram. Estava em um desespero ofegante; suava um suor salgado que ao respingar encontrava o caráter neutro do liquido no chão. Sua saliva também começara a escorrer, com pequenas borbulhinhas, e ia formando riachinhos pelo corpo ou pelas tiras de roupa vermelha até o chão.
Já estavam todos os moveis coloridos e todos os tapetes submersos pela camada sanguínea. Sangue, sangue, era um fluido sanguoso, não só sangue, era sanguoso e denso.
Olhou para os lados. Percebeu que havia catarro no nariz e lágrimas nos olhos que escorriam freneticamente. Sentiu também o calor nas coxas: era a urina. Sua respiração não mais eliminava gases, mas sim vapores e umidades compostas. Ambiente se dava por úmido e quente, porem ele sentia frio. “Como acabar com tudo isso? Como limpar e retornar?”.
Com as últimas forças das pernas foi até a cozinha, pela última vez, abriu o armário, pegou um pote grande e voltou correndo à sala. Abriu o pote, o que havia no pote? Meteu a mão lá dentro e apanhou um punhado de sal. Atirou o pó branco no chão, por todas as partes, em todos os móveis, e no próprio corpo. Esfregou o sal com as palmas das mãos no rosto, nos braços, nas orelhas, nos narizes. Rapidamente, os animais invadiram a sala: eram os gatos, velhos, sujos e porcos, que passavam a se banhar e se alimentar.
Sentiu-se perdido, rasgou a roupa, ficou nu; espalhou sal por toda a superfície do corpo. Sentiu-se perdido, e viu que havia morrido já há uma semana.

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