domingo, 10 de maio de 2009

Vida em Cartaz

Como eu já havia dito antes aqui:

"(...)E principalmente a vida vista de fora, como um filme em cartaz nos cinemas, de forma que todos possam ler o que se passou. Essa idéia me dói muito."

O Malabarista

Ele estava deitado em um divã. Em uma sala escura e confortável. Lá havia um pianinho de teclas tortas e trocadas, tacos de madeira compondo o piso e um lustre de bronze sobre sua cabeça.
Ele tinha bolinhas coloridas nas mãos. Três, claro. Uma vermelha, uma azul e a outra verde. Em pé lado da cabeceira do divã no qual estava deitado, havia um homem com um arco e flechas nas mãos. Ele mirava em um determinado ponto na parede e o acertava em cheio sempre disparando a flecha em extrema sincronia com as palavras que lhe saiam da boca. Dizia “Eu penso que...” e lá ia a flechinha roxa voando e atingindo exatamente onde ele desejava. Ele dizia “Eu digo que...” e lá ia a flechinha rosa voando e atingindo exatamente onde ele desejava.
Conversavam. Um atirando flechas o outro jogando as três bolas ao ar, malabaristicamente, fazendo com que elas voltassem sempre à suas mãos sem se prender em nenhum outro lugar. Sim, elas sempre voltavam ao lugar de onde partiram: suas mãos.
“Que lindo é o ato de fazer malabarismos, não?”, o das flechas perguntou, e a flechinha preta atingiu exatamente um ponto marcado na madeira da parede do recinto.
“Sim, é lindo. As bolas, que são expressões cabais da nossa natureza complexa, atravessam, por um impulso epifânico gerado pelo pensamento do agir das mãos, o ar, que nada mais é do que algo que passa, assim como tudo que há entre nossas mãos e nossos seres, recheadas de muito que apenas se expressam pelos gestos, que nada mais são do que tudo que há após a existência ter sido gesticulada por si mesma...”, ênfase nas reticências.
As bolas faziam movimentos gelatinosos, triangulares e escorregadios. Desviavam de obstáculos invisíveis para atingirem alvos nunca determinados, acabando assim construir caminhos nada perceptíveis, durante sua travessia no ar, sobre as mãos dele.
“É difícil fazer isso com as bolas?”
“Não, não é difícil. Eu estou acostumado. Na verdade eu preciso disso, não sei viver sem fazer outra coisa. Ou melhor, não sei fazer outra coisa, por enquanto, do que viver ser fazer isso. Quando as pego em minhas mãos, sinto o seu toque, eu percebo que posso mudar as sua cor assim quando sentir vontade, ou melhor, assim quando perceber que é necessário para que elas não caiam no chão e se espatifem, pateticamente, em mil pedaços talhados.”
E então, a pergunta crucial.
“Posso pegar uma delas?”
Ele olhou para o homem, em pé ao lado de sua cabeça. E fez isso sem interromper o seu malabarismo interminável, que teve triunfante continuidade quando ele tornou a abrir a boca.
“Claro que você pode pegar uma delas”, disse isso e ficou parado, olhando estranhamente para o homem, ainda sem interromper o movimento com as mãos e as bolas. A velocidade do malabarismo se intensificou.
“Então me dê uma das bolas.”
“Que bolas?”
“As que estão nas suas mãos, oras!”
Ele respirou fundo, com os olhos arregalados, com o olhar levemente dirigido para baixo, preparando-se para dizer algo importante. Era como se sua cabeça estivesse processando para onde iria correr e, ao mesmo tempo, tentando esconder de si mesma que estava correndo. As bolas no ar, cada vez mais rápido, voavam sobre as mãos do malabarista.
“Não... Você não entendeu bem... Quando eu te disse bolas, eu não estava me referindo às bolas, por que ter bolas é algo que toma minha fala, ou melhor, por que ter uma fala como a minha é algo que toma minhas bolas. As bolas tidas como você as toma, não querem ser expressas pelas mãos e pelos movimentos de um malabarista como eu. Todo esse movimento legitimador me dá pano para construir muitas mangas a respeito do que eu quero dizer, ou melhor, do que eu quero dizer a respeito.”
O homem das flechas certeiras fez uma cara severa. Mirou o arco para o malabarista, que desesperado, sem se levantar do divã, jogava e recolhia as bolas cada vez mais rápido no ar. O homem disse ao malabarista.
“Bolas são palavras, não?”
Então, o malabarista percebeu que o recinto em que ele estava não era mais o mesmo. O pianinho das teclas tortas e trocadas parecia, como uma reminiscência distante, uma árvore seca e velha, quase carbonizada. Os tacos no chão, já não eram mais tacos, eram galhos secos e espinhosos esparramados com reminiscências em um solo escuro. O lustre sobre sua cabeça, já era um sol reminiscente. O divã já não era mais um divã: era um caixão nada reminiscente.

Por Burke contra Burke

O capítulo que eu recentemente li do A Era das Revoluções acerca da revolução francesa me chamou bastante atenção dada a passinalidade - bem controlada, digamos pertinentemente - com que Hobsbawm lida com o assunto. Nesse sentido, discorro aqui sobre uma vertente específica da grande herança dessa revolução, revisando meus estudos de direito (um pouco capenga, mas, ainda assim, vá lá), tentando pensar tudo que a leitura do texto do escritor inglê me trouxe à mente relacinando-o com Norberto Bobbio, um dos meus preferidos da ciência política contemporânea.
O capítulo A herança da grande revolução, da obra A Era dos Direitos, de Bobbio, nos traz uma vasta análise acerca do panorama das fontes do direito no contexto pós-revolução francesa.
O autor inicia com a descrição do momento chave para o campo da política e para o direito, que é a Revolução Francesa, considerando a afirmação do fim do regime feudal e, também, quanto à aprovação da Declaração dos Direitos do Homem, importantíssimo documento que sintetizava toda a ideologia da época, assim os como valores que estavam em voga.
Sobre isso, é feita a inevitável comparação com a Bill of Rights, a declaração de direitos da luta pela independência norte-americana. Percebe-se então que quanto ao conteúdo, a influencia da declaração dos Estados Unidos é indiscutível, por mais que seus contextos de formulação sejam muito diferentes – a luta pela independência colonial e a derrubada de um regime político e social que há séculos se perpetuava. Ambas as declarações possuíam valores e interesses em comum, sendo representantes de todo um viés do pensamento moderno, que se estende desde as concepções modernas dos direitos até a teoria política moderna.
Bobbio destaca um ponto que constitui a principal diferença entre as duas declarações, que é a referencia evidente, na versão francesa, à vontade geral como guia para o poder legislativo. Ora, vemos aí uma forte influencia de Rousseau, que desenvolveu esse conceito, baseado em preceitos individualistas e naturalistas. Rousseau valorizava os direitos individuais, os quais considerava inalienáveis - razão pela qual, por exemplo, ele sempre rejeitou a idéia da democracia representativa, na qual os cidadãos transferiam seu poder de decisão para um representante.
É exatamente neste ponto que reside os preceitos das declarações em discussão, a existência de direitos naturais pertencentes ao homem e o esforço que se deve fazer para respeitá-los e protegê-los. O texto diz “O ponto de partida comum é que o homem tem direitos naturais que, enquanto, naturais, são anteriores à instituição do poder civil e, por conseguinte, devem ser reconhecidos, respeitados e protegidos por esse poder.”
Essa nova concepção do homem, portador de direitos que se encontrar acima da organização social e das suas instituições, sejam elas quais sejam, constitui uma importante reviravolta no pensamento humano da época. Uma reviravolta, pois representa o rompimento com toda uma ordem tradicionalista que se baseava na desigualdade dos elementos. Tanto no contexto político clássico quanto no medieval, as relações de poder, e logo os direitos de cada um, se configuravam de maneira desigual e desequilibrada, pois não havia uma concepção contrária, um diferente modo de perceber o homem. No panorama clássico, essa visão tradicionalista é encarnada pelo modelo aristotélico, que afirma que o homem é um animal político que nasce em um grupo social, no qual ele aperfeiçoa sua própria natureza. Ou seja, o todo é anterior as partes, uma concepção organicista, assim como é dito no texto: “Numa concepção orgânica da sociedade, as partes estão em união do todo; numa concepção individualista, o todo é o resultado da livre vontade das partes.”
Era necessário que se considerasse o homem como um indivíduo isolado, a parte dos grupos sociais e das esferas políticas. Quando essa consideração é feita, dá-se a discussão sobre os direitos do individuo. Também é importante afirmar que dessa inversão nasce a democracia moderna.
Ainda sobre a desigualdade, o próprio Rousseau faz uma análise descritiva acerca da sua trajetória no tempo, em Discurso Sobre a Desigualdade entre os Homens, no qual ele afirma que a propriedade é a origem do mal e da desigualdade, e o estado e a sociedade civil são produtos da voracidade do homem, que se mostram como benéficos, mas que têm como objetivo principal preservar essa desigualdade. Nesta mesma obra, ele tece comentários sobre a natureza do homem, idealizando-a, afirmando que nesse estado o homem é puro, suave e bom. Nesse ponto, podemos afirmar que os direitos naturais do homem são, para Rousseau, aqueles que se encontram no seu estado de natureza, ou seja, direitos que expressam diretamente valores como a igualdade e liberdade.
Também podemos encontrar uma discussão sobre os direitos naturais na teoria hobbesiana. O autor destaca o estado de natureza como o estado de guerra, diferentemente de Rousseau, e também reconhece a existência de leis naturais – que são a representação desses direitos – que tem como objetivo garantir a ordem e a igualdade entre os homens. O objetivo da sociedade civil seria de positivar essas leis naturais.
Dessa forma, é fácil percebermos que, Hobbes, apesar de não crer na existência de direitos naturais no estado de natureza, acredita nas leis naturais, que estão incutidas na realidade humana e reconhece a sua importância parta tal.
Podemos agora inferir uma análise sobre o paralelo entre Hobbes e Rousseau, frente às suas visões jus naturalistas. A principal diferença consiste em que, o primeiro faz uso de uma abordagem teológica da origem dos direitos naturais do homem, quando o segundo realiza uma interpretação racional desse tema. Essa diferença constitui um importante elemento da ideologia moderna: a transição dessas fontes, do teológico para o racional.
Ao prosseguir, Bobbio discute sobre uma falácia naturalista – que pode ser resumido por: os juízos de ser não decorrem necessariamente dos juízos de dever ser - na declaração francesa. Essa falácia é representada pela frase que abre a declaração: “Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”, afirmação que, apesar de estar escrita como se descrevesse a realidade, nos prescreve algo que deve ser seguido, algo que o documento deseja que seja a realidade.
O peso do individualismo, desde sua conceituação naquela época até a atualidade, é imenso, assim como observa o autor. Primeiramente, como já dissemos, que esse preceito contribui para a fundamentação da democracia, como ela viria a se estabelecer na contemporaneidade. Bobbio argumenta dizendo “Se a concepção individualista da sociedade for eliminada não será mais possível justificar a democracia como uma boa forma de governo”. Essa afirmação é extremamente válida, pois a democracia só pode existir com a garantia de direitos individuais, partindo da idéia de que primeiro vem liberdade dos cidadãos isolados e depois o poder do governo, que é controlado pelas vontades dos cidadãos.
Retomando mais uma vez o pensamento de Rousseau, podemos dizer que a inversão no pensamento do homem dessa época também encontra representatividade nos trabalhos desse autor acerca da relação indivíduo-governo. Para ele, os indivíduos deveriam reconhecer a importância do estabelecimento de um governo constituir essa sociedade civil com base em sua racionalidade – que é representada por vontade dos indivíduos de possuir um governo que seja seu. Essa nova configuração bate de frente com as antigas concepções de governo – tanto a clássica como a medieval - exatamente devido à mudança na ideologia política acerca dos direitos naturais do homem, ou seja, da individualidade que o homem conquistou – fator que faz com que ele garanta para si a posse de sua sociedade civil organizada.
É fácil observarmos o impacto disso na atualidade. Na democracia brasileira, por mais deturpada e corrupta que seja, os indivíduos tem consciência de que o governo é deles e para eles, em teoria, ou seja, esse preceito está incutido na mentalidade política de nossa época, de forma que seria difícil imaginarmos sistemas políticos ocidentais sem esse fator.
O texto nos traz algumas críticas aos direitos naturais. A primeira a ser apresentada é a de Edmund Burke, um ferrenho e ácido crítico da Revolução Francesa. Burke, que não acreditava que uma Constituição pudesse ter validade ao ser escrita, mas apenas com o decorrer dos séculos, ataca severamente os novos valores morais presentes na declaração francesa: “Não podemos nos deixar esvaziar de nossos sentimentos para nos encher artificialmente como pássaros embalsamados num museu, de palha, de cinzas e de insípidos fragmentos de papel exaltando os direitos do homem”.
Outra crítica substancial que foi feita, veio de Marx, que ataca a defesa à propriedade privada que a declaração faz, tornando-a inviolável e sagrada, e esses direitos naturais, os quais para ele representam apenas os interesses particulares de uma determinada classe que queria subir ao poder.
Como o próprio autor diz, ambas as crítica não poderiam ir adiante. A de Burke perdeu-se no tempo por não apresentar uma sistematização e argumentação mais profunda, algo importantíssimo para uma crítica substancial que vise confrontar com uma nova Constituição. Já a de Marx é destruída pelo argumento de que não importa de quem seja esse interesse de defender esses direitos naturais, o que importa é a discussão sobre a validade desses novos valores e a indexação dos mesmos a ideologia da sociedade, se verificado que são positivos a ela. Como em grande parte de suas idéias, Marx peca pelo fraco poder de análise e discussão, limitando suas explicações muitas vezes a apenas uma justificativa: a ascensão e manutenção de uma classe dominante no poder, não percebendo as nuances e particularidade dos fatos.
A mais séria das críticas assume um caráter filosófico, e por isso deve ser muito bem analisada. Ela nos traz uma discussão sobre a existência desses direitos naturais do homem: será que existem mesmo esses direitos?
O primeiro argumento que podemos encontrar reside em Jeremy Bentham, filosofo e jurista inglês difusor do utilitarismo, que nega a existência de um direito natural universal, que assista todos os homens. Dessa forma, ele segue a formula “a felicidade do maior número”, ou seja, os valores a serem tomados e as ações a serem realizadas devem ser aquelas que proporcionam a maior felicidade para o maior número de pessoas.
O Historicismo também contribuiu severamente para o ataque ao jus naturalismo. Essa corrente defende a ênfase na posição central da história como fator de compreensão a realidade humana. Dessa maneira, o Historicismo diz que os valores do homem são o produto dos processos históricos aos quais ele foi submetido, o que nega não só a universalidade dos direitos naturais, mas também a crença em que a origem do direito seja a natureza humana.
A mais forte crítica ao jus naturalismo vem de uma fonte a qual se firmaria futuramente como sua principal opositora, o positivismo jurídico. Para essa escola, o direito do homem não provém de sua natureza, mas sim são conseqüências do estabelecimento o Estado. Essa nova visão jurídica teve um amplo impacto sobre a consciência jurídica, algo observável até hoje, quando os direitos naturais deixaram de possuir validade, por isso precisam ser positivados.
Essa corrente encontrou sua mais radical representação na Escola de Exegese, que alem de clamar para si a posição que o direito natural havia conquistado, possui algumas características importantes como, por exemplo, a busca pela certeza jurídica e da infalibilidade da norma jurídica, através da positivação do direito.

Apesar de todo o abalo que o jus naturalismo sofreu, desde sua “ascensão” com a Revolução Francesa e com o Iluminismo, no século XVIII, é inegável a sua influencia e importância na contemporaneidade. É um grande equivoco afirmar que as normas jurídicas de hoje, às quais estamos submetidos, são apenas oriundas da expressão do direito positivo. Mesmo o naturalismo tendo perdido sua validade de aplicação direta, ainda podemos encontrar seu peso, por exemplo, na Constituição Brasileira de 1988; o Art. 5º é o melhor exemplo a ser citado.
Além do mais, é válido lembrar de todos os organismos internacionais que encabeçam a luta pelos direitos humanos, que buscam embasamento direto no jus naturalismo, e realizam duas ações no cenário mundial tomando esses valores como existentes e importantes de serem seguidos.
Finalmente, o mais importante que devemos observar, além de todo o impacto jurídico que temos analisado, é o impacto na mentalidade do homem, como já dito. A discussão que foi propiciada pela existência de direitos naturais, trouxe toda uma idéia de individualidade e igualdade entre os homens, que modificou solidamente não só as relações políticas como também a dinâmica das relações humanas, que assumiram, como já analisado, uma configuração diferente.