Começou. As pupilas caminhavam de uma extremidade à outra, como se ele lesse, no momento em que se deu por acordado. Envolto em três cobertores, e mesmo assim ainda com os pés para fora, ele sentia frio. Estava frio, chovia lá fora. Logo no dia em que Rorrim havia programado dar uma volta pela manhã e aproveitar o sol matinal. Ao abrir os olhos naquele instante, ele percebeu, pela luminosidade cinzenta que o seu quarto-sala vestira, que ele deveria mudar de planos.
Pôs-se de pé. Lavou o rosto na água gelada da torneira gelada. Vestiu o roupão de linho. Passou o café, encheu uma xícara grade. De certa forma ele achava que esses três elementos combinavam: o frio, o roupão de linho e o café. Se postos todos os três em uma única caixa iluminada cinzentamente, claro.
Por mais que apreciasse esse modo de vida preguiçoso, ele estava cansado. Queria sair um pouco de casa, sentia que não agüentaria nem mais um dia com a caneta na mão escrevendo corridamente durante horas. Rorrim estava escrevendo um conto interminável. Interminável não em extensão, mas em prazo de escrita e consumo de seu tempo, e também em outros elementos. Escrevia muito, e apagava e rabiscava mais ainda o que havia escrito. Aquela tarefa se tornara fadigosa. E agora, justamente no dia em que ele resolvera reservar para tomar um pouco de sol, a situação conspirara contra ele, forçando-o a debruçar-se mais uma vez nos escritos amontoados pelo chão de mogno da sala. Não havia saída. É claro que ele poderia fazer outra coisa ao invés de voltar a escrever naquele dia, mas, justamente no momento em que ele procurou algo que pudesse substituir tal atividade, sentiu um enorme remorso em abandonar os papéis e decidiu dedicar-se, por mais exausto que estivesse, a eles.
Deitou-se no chão, que também estava gelado, e apanhou as folhas: era assim que ele gostava de escrever. Decidiu não reler tudo o que havia escrito até então, ao todo três paginas. Recapitulou apenas as últimas linhas e pôs-se a escrever.
Não conseguiu escrever nada. Olhava para o teto, para as fendas no mogno do assoalho, para a xícara de café, agora já vazia, para o ar invisível, mas não conseguia extrair de nada faísca que pudesse impulsioná-lo a retomar o conto. Sentiu-se sem energia alguma e totalmente indisposto a escrever naquele momento e decidiu recorrer a uma antiga técnica de relaxamento que não praticava há tempos: visitar o porão.
Levantou-se, definitivamente, e foi ao porão. Desceu as escadas de madeira semi-podre, devido à umidade do local, e olhou a sua volta. Adorava porões. Dirigiu-se a um amontoado de caixas de papelão, as quais nunca havia reparado naquele recinto. “Devem ser do antigo dono da casa.” Abriu-as. Em seu interior, havia muitos livros, o que o deixou contente. Um deles era um que ele havia lido há muito, sobre uma personagem chamada Dorian. “Idiota, ele... Como nunca percebeu que aquele quadro de quadro não tinha nada, era simplesmente um espelho! Muito idiota...”, comentou.
Contudo, o que mais lhe chamou a atenção foi um ramalhete de papéis. Parecia ser um conto. Ao ler o título, encabulou-se: “Metalinguagem”, o mesmo do conto que estava escrevendo. Estranhou. Correu de volta a sala, jogou-se no chão, colocando ambos contos lado a lado.
Iniciou a leitura do conto (que apenas se diferenciavam pelas cores das páginas, mais amarelas e, as do outro, mais alvas). A história narrava os fatos de um escritor que, ao cansar-se de escrever um conto, dirige-se ao porão e encontra, acidentalmente, um conto com o mesmo título – Metalinguagem – do que escrevia. Estranho. O enredo parecia referir-se ao próprio conto. Ora, esse era o tema da história! Havia mais: o conto ainda relatava a comparação e o estranhamento do autor ao comparar as histórias, que faziam referências a si mesmas. Estranho!
Agora não sabia mais diferenciar os contos: não sabia mais qual era o seu, qual era o achado no porão. Eram idênticos. Na verdade, possuíam uma diferença básica: a cor. Não julgue Rorrim por daltônico e muito menos idiota por não saber diferenciá-los com base nesse critério. O fato é que ele simplesmente não sabia qual dos dois era o seu justamente, pois, em ambas as narrativas havia um trecho que dizia exatamente assim: “[...] que apenas se diferenciavam pelas cores das páginas, mais amarelas e, as do outro, mais alvas.”, o que impedia com que ele soubesse se o de paginas brancas ou amarelas era o seu por falta de um especificador de referencial!
Rorrim se sentia perdido e com mil flechas apontando em direção a ele. Os arcos eram brandidos por ele mesmo, como se estivesse em frente a um espelho, olhando para si mesmo, em um labirinto labiríntico que dava voltas e terminava no mesmo lugar. E ele leu esse trecho na versão de páginas amarelas e achou interessante a construção “labirinto labiríntico”, um jogo de vocábulos que contribui para a construção de uma figura linguagem criativa, já que a própria idéia de labirinto é evocada na expressão formada. E, essa idéia é ainda mais valorizada se trabalhada em um conto cujo intuito principal é fazer com que o leitor se sinta em um labirinto. Opa, essas últimas assertivas são problemáticas: elas rompem com gênero desse texto, ele deixa de ser um conto passa a ser uma análise. É melhor apagá-las. Ou não? Deixá-las-ei aí, não as apagarei...
“Deixá-las-ei aí”, disse Rorrim, ao ler a versão branca do conto.
“Deixá-las-ei aí”, disse Rorrim, ao se ler na versão amarela do conto.
(Preocupação com a colocação pronominal é algo tão erudito!) Riu ao ler esse trecho em alguma das duas versões, não sabia qual.
Seus joelhos doíam por estarem a muito tempo sendo pressionados contra o chão duro de mogno. Hoje ele sabia que havia sido um erro não haver colocado carpetes macios por todo o chão da sala, se houvesse feito isso, seus joelhos não estariam doendo naquele momento. “Ao ler essa passagem de uma das duas versões, ele reparou que a palavra ‘erro’ havia sido escrita com a grafia errada e resolveu corrigir. Fez isso em ambas as versões. Odiava erros ortográficos”.
Rorrim decidiu fazer algo que não estivesse na narrativa. Queria dar uma de espertinho, de romper com a metalinguagem. Mas o que poderia fazer para conseguir isso? “pensou.” Já sei: vou tentar romper com a metalinguagem! Duvido que isso esteja narrado aí! “... Será?”, levou o dedinho à boca.
Seu próprio ato já fornecia respostas para sua dúvida. Às vezes, escrever é vigiar.
E, lembrando-se da definição tosca do gênero literário “Conto” que uma professorinha de primário ensinou-lhe (uma narrativa curta e blá, blá...), pegou a versão amarela e leu o seguinte trecho: “E, lembrando-se da definição tosca do gênero literário “Conto” que uma professorinha de primário ensinou-lhe (uma narrativa curta e blá, blá...), pegou a versão amarela e leu o seguinte trecho...”
De olhos arregalados, ele atirou o conto amarelo ao chão, assustado.
“Rorrim percebeu, ao ler esse exato trecho nessa versão branca do conto, que todos os fatos narrados aqui refletiam simplesmente os fatos que estavam se passando em seu dia! Desde o momento em que acordara! Ele era o personagem daqueles enredos que lia e que escrevia.”
Enraivou-se e rasgou todas as folhas que estavam a sua frente. Não havia mais contos agora. No entanto, por que essa metalinguagem alucinante continuava e continuou?
Na verdade, ainda existia uma versão do conto recontando a um leitor escritor, ou a um escritor leitor, os fatos renarrados da narrativa. Não é? É. E é por isso que o conto que Rorrim escreve é interminável.
Pôs-se de pé. Lavou o rosto na água gelada da torneira gelada. Vestiu o roupão de linho. Passou o café, encheu uma xícara grade. De certa forma ele achava que esses três elementos combinavam: o frio, o roupão de linho e o café. Se postos todos os três em uma única caixa iluminada cinzentamente, claro.
Por mais que apreciasse esse modo de vida preguiçoso, ele estava cansado. Queria sair um pouco de casa, sentia que não agüentaria nem mais um dia com a caneta na mão escrevendo corridamente durante horas. Rorrim estava escrevendo um conto interminável. Interminável não em extensão, mas em prazo de escrita e consumo de seu tempo, e também em outros elementos. Escrevia muito, e apagava e rabiscava mais ainda o que havia escrito. Aquela tarefa se tornara fadigosa. E agora, justamente no dia em que ele resolvera reservar para tomar um pouco de sol, a situação conspirara contra ele, forçando-o a debruçar-se mais uma vez nos escritos amontoados pelo chão de mogno da sala. Não havia saída. É claro que ele poderia fazer outra coisa ao invés de voltar a escrever naquele dia, mas, justamente no momento em que ele procurou algo que pudesse substituir tal atividade, sentiu um enorme remorso em abandonar os papéis e decidiu dedicar-se, por mais exausto que estivesse, a eles.
Deitou-se no chão, que também estava gelado, e apanhou as folhas: era assim que ele gostava de escrever. Decidiu não reler tudo o que havia escrito até então, ao todo três paginas. Recapitulou apenas as últimas linhas e pôs-se a escrever.
Não conseguiu escrever nada. Olhava para o teto, para as fendas no mogno do assoalho, para a xícara de café, agora já vazia, para o ar invisível, mas não conseguia extrair de nada faísca que pudesse impulsioná-lo a retomar o conto. Sentiu-se sem energia alguma e totalmente indisposto a escrever naquele momento e decidiu recorrer a uma antiga técnica de relaxamento que não praticava há tempos: visitar o porão.
Levantou-se, definitivamente, e foi ao porão. Desceu as escadas de madeira semi-podre, devido à umidade do local, e olhou a sua volta. Adorava porões. Dirigiu-se a um amontoado de caixas de papelão, as quais nunca havia reparado naquele recinto. “Devem ser do antigo dono da casa.” Abriu-as. Em seu interior, havia muitos livros, o que o deixou contente. Um deles era um que ele havia lido há muito, sobre uma personagem chamada Dorian. “Idiota, ele... Como nunca percebeu que aquele quadro de quadro não tinha nada, era simplesmente um espelho! Muito idiota...”, comentou.
Contudo, o que mais lhe chamou a atenção foi um ramalhete de papéis. Parecia ser um conto. Ao ler o título, encabulou-se: “Metalinguagem”, o mesmo do conto que estava escrevendo. Estranhou. Correu de volta a sala, jogou-se no chão, colocando ambos contos lado a lado.
Iniciou a leitura do conto (que apenas se diferenciavam pelas cores das páginas, mais amarelas e, as do outro, mais alvas). A história narrava os fatos de um escritor que, ao cansar-se de escrever um conto, dirige-se ao porão e encontra, acidentalmente, um conto com o mesmo título – Metalinguagem – do que escrevia. Estranho. O enredo parecia referir-se ao próprio conto. Ora, esse era o tema da história! Havia mais: o conto ainda relatava a comparação e o estranhamento do autor ao comparar as histórias, que faziam referências a si mesmas. Estranho!
Agora não sabia mais diferenciar os contos: não sabia mais qual era o seu, qual era o achado no porão. Eram idênticos. Na verdade, possuíam uma diferença básica: a cor. Não julgue Rorrim por daltônico e muito menos idiota por não saber diferenciá-los com base nesse critério. O fato é que ele simplesmente não sabia qual dos dois era o seu justamente, pois, em ambas as narrativas havia um trecho que dizia exatamente assim: “[...] que apenas se diferenciavam pelas cores das páginas, mais amarelas e, as do outro, mais alvas.”, o que impedia com que ele soubesse se o de paginas brancas ou amarelas era o seu por falta de um especificador de referencial!
Rorrim se sentia perdido e com mil flechas apontando em direção a ele. Os arcos eram brandidos por ele mesmo, como se estivesse em frente a um espelho, olhando para si mesmo, em um labirinto labiríntico que dava voltas e terminava no mesmo lugar. E ele leu esse trecho na versão de páginas amarelas e achou interessante a construção “labirinto labiríntico”, um jogo de vocábulos que contribui para a construção de uma figura linguagem criativa, já que a própria idéia de labirinto é evocada na expressão formada. E, essa idéia é ainda mais valorizada se trabalhada em um conto cujo intuito principal é fazer com que o leitor se sinta em um labirinto. Opa, essas últimas assertivas são problemáticas: elas rompem com gênero desse texto, ele deixa de ser um conto passa a ser uma análise. É melhor apagá-las. Ou não? Deixá-las-ei aí, não as apagarei...
“Deixá-las-ei aí”, disse Rorrim, ao ler a versão branca do conto.
“Deixá-las-ei aí”, disse Rorrim, ao se ler na versão amarela do conto.
(Preocupação com a colocação pronominal é algo tão erudito!) Riu ao ler esse trecho em alguma das duas versões, não sabia qual.
Seus joelhos doíam por estarem a muito tempo sendo pressionados contra o chão duro de mogno. Hoje ele sabia que havia sido um erro não haver colocado carpetes macios por todo o chão da sala, se houvesse feito isso, seus joelhos não estariam doendo naquele momento. “Ao ler essa passagem de uma das duas versões, ele reparou que a palavra ‘erro’ havia sido escrita com a grafia errada e resolveu corrigir. Fez isso em ambas as versões. Odiava erros ortográficos”.
Rorrim decidiu fazer algo que não estivesse na narrativa. Queria dar uma de espertinho, de romper com a metalinguagem. Mas o que poderia fazer para conseguir isso? “pensou.” Já sei: vou tentar romper com a metalinguagem! Duvido que isso esteja narrado aí! “... Será?”, levou o dedinho à boca.
Seu próprio ato já fornecia respostas para sua dúvida. Às vezes, escrever é vigiar.
E, lembrando-se da definição tosca do gênero literário “Conto” que uma professorinha de primário ensinou-lhe (uma narrativa curta e blá, blá...), pegou a versão amarela e leu o seguinte trecho: “E, lembrando-se da definição tosca do gênero literário “Conto” que uma professorinha de primário ensinou-lhe (uma narrativa curta e blá, blá...), pegou a versão amarela e leu o seguinte trecho...”
De olhos arregalados, ele atirou o conto amarelo ao chão, assustado.
“Rorrim percebeu, ao ler esse exato trecho nessa versão branca do conto, que todos os fatos narrados aqui refletiam simplesmente os fatos que estavam se passando em seu dia! Desde o momento em que acordara! Ele era o personagem daqueles enredos que lia e que escrevia.”
Enraivou-se e rasgou todas as folhas que estavam a sua frente. Não havia mais contos agora. No entanto, por que essa metalinguagem alucinante continuava e continuou?
Na verdade, ainda existia uma versão do conto recontando a um leitor escritor, ou a um escritor leitor, os fatos renarrados da narrativa. Não é? É. E é por isso que o conto que Rorrim escreve é interminável.
6 comentários:
agora você deu de atacar de scarlatti. sei. scarlatti pós-moderno: recriação do dorian gray.
eu nunca disse que não era picareta também.
=p
vc adora me fazer te roubar. e nem sabe quando o faz. por isso adoro.
"Mas eu estou confundindo tudo outra vez, minha Nossa Senhora! Alfredo Germont é de uma ópera! Traviata. Foi Traviata! [...] Como ando com a cabeça, Clessi!"
Genial!
Senti-me espertíssimo quando me dei conta que 'Rorrim' era 'mirror' ao contrário! hahaha
Adorei.
marrom tem uma imagem enantiomorfa interessante.
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