quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

Xadrez Geléia


E já era somente o adversário daquele jogo, e tinha a sua frente somente o do chapéu-coco, e entre eles, apenas o tabuleiro daquele jogo monocromático. Sim, tudo era somente isso, mas agora ele sabia que poderia moldar, ou melhor, que poderia não precisar moldar as coisas, que poderia tentar abstrair-se o máximo possível e fugir daquilo tudo. O do chapéu-coco ergueu uma sobrancelha, tinha os braços apoiados na mesa firmemente e confiosamente, mas também como se tivesse medo de cair da cadeira. O adversário queria poder girar os olhos, a fim de ver tudo de ponta cabeça.
Então ele percebeu que tudo não passava de uma geléia, uma grande geléia colorida e disforme, que aos muitos poucos instantes de toda a vida, é reduzido e modulado e moldado e adequado e formado nas formas que conhecemos. Tesoura de jardim e cerquinha de madeira. Você está achando que foi muito rápido?
Racionalidade. Bendito seja esse código de leis derivado da puríssima e perfeitíssima constituição dos sentidos. Era assim, e se assim o era, o adversário se viu ali naquela cadeira almofadada desejando ver um ponto, e só um ponto, e nele poder ser sugado, ou talvez invadí-lo, ou ser evadido por ele mesmo, em uma mescla de sentidos imperfeitos que aos poucos ficam sendo jogados de lado, no meio-fio, na lixeira, para trás.
Era tudo uma questão de passividade. O homem não cria leis, códigos, fórmulas, linguagens. Ele apenas as adapta, as capta no ar, segundo suas observações e anotações. Logo, não é a natureza passiva, que deita sobre uma maca de consultório e recebe cutucadas, que é auscultada, que é revisada, passivamente. Não, não é assim. É só o homem, talvez o próprio adversário, até esse dia, talvez qualquer um, que mergulha por entre um ambiente de fluidos viscosos e de lá retira suas observações, todas elas limitadas por seu reduzido campo de visão atmosférico e palpebriano e orgânico e adocicado e semi-ultramagnetico. Era tudo uma questão de passividade e de adaptação.
Era como uma cerca, ou então como uma tesoura de jardinagem, uma que delimita e separa, a outra que poda restringe. Puta merda! Que puta coisa! E de repente já era uma maçã que caia rolando e rolando, passivamente. Ou então, já era uma maçã que se cansava de ali estar dependurada na árvore e tomava a decisão de desligar-se dela, de pousar, pousar, no chão, de sair correndo, talvez se esconder no verde, talvez pular alguns objetos humanos que estiverem no seu caminho.
Quebras são legais. Desde quando o natural se tornara tão imperativo? O natural era só o imperador; O imperador, perdão. Essas coisas são difíceis de serem ditas, mas o adversário, naquele instante, que me recuso em classificar como mágico apesar da adequação, percebera que nunca antes havia percebido aquilo. E agora, com um simples movimento de uma peça, com um simples olharzinho obliquo, com uns certos dizeres aleatórios – ou até mesmo com imensas gargalhadas em background que não impediam o que estava acontecendo – ele percebera. Havia entendimento.
Não havia entendimento. Era contra as regras. Estava passando daquela linhazinha desenhada no chão que delimitava – oh bela função das linhas! – o permitido do proibido. E foi assim mesmo que o adversário sentiu-se sugado para dentro daquele redemoinho circular. Foi como um clique, um estalo, só que sem som algum. E o do chapéu-coco transformou-se em anfitrião, um anfitrião que assiste apenas, e sabe exatamente o que se passa na cabeça dos seus convidados. Havia agora percebido o ocorrido, havia dado conta de que isso sempre fora algo que estava logo ali, parado, ou pairando, esperando que alguém viesse e visse a coisa e acenasse. E assim essa coisa mantinha sua existência.
- Vamos. Sua vez – insistiu o do chapéu-coco naturalmente.
O adversário achou estranho aquele movimento estranho.
O do chapéu-coco moveu o antebraço. Apanhou o peão que estava aguardando cochilando na parede do tabuleiro e avançou, na diagonal, oito espaços, atingindo a casa em que estava o rei preto, derrubando-o.
O jogo era o Xadrez. De peças pretas e de peças brancas que dançavam em um tabuleiro ordenado. E, de cada lado da mesa, um jogador dostoievskiano; calados, um com as mãos fazendo suporte ao queixo, o outro, de braços cruzados esperando a próxima jogada. Aquilo tudo era um confronto, dos mais simples, dos mais sutis, dos mais importantes, dos mais profundos, dos mais obsequiáveis, dos mais valorosos. Era um confronto no qual as coisas estavam sobre a mesa; e a mesa, não estava de cabeça para baixo. Isso mesmo, de cabeça para baixo.

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