quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

Terminal


Naquele dia ele acordou como se houvesse chupado um limão na noite anterior. E realmente sua boca encontrava-se ácida por demais, seca por demais. Lembrou-se: é perigoso, perigoso ter os lábio desse jeito.
E lá, jogada no sofá, a moça permanecia dormente, na verdade adormecida, conspirando, talvez, em seus sonhos, contra si mesma. Ou não, talvez ela estivesse somente sonhando com algo, porque é sempre com algo que nós sonhamos. Sua saia vermelha bastante curta, manchada de conhaque escuro, porque era desse que ela gostava, estava estática, delineando os contornos e tornos das pernas. Algumas mechas do cabelo, castanho escuro, deitavam sobre o rosto.
O que ele mais queria era saber com o que ela sonhava! Não ousava nem mesmo especular o que viria a ser. E, então, bruscamente ela se ergueu, respirando fundo e rápido. Ela tinha o olhar desorganizado e os lábios derretidos. Levou a mão esquerda à testa e tossiu duas vezes.
-Diga-me, com o que sonhava.
Ela fitou-o diretamente.
-Não sonhei com você, meu amor, fique tranqüilo – respondeu em tom de sarcasmo.
-Diga!
Ela estremeceu, pôs-se de pé. Ela fez o mesmo. Após piscar duas vezes rapidamente, ela disse:
- Sonhei um sonho.
- O que havia nesse sonho?
- ...Sonhei que eu havia morrido. Sonhei que eu mesma não estava no meu sonho.
O homem, assustado, deu um passo para traz. Permaneceu calado. Então, desenhou na face uma expressão de raiva.
- Como você pode?
- Não tive culpa! Não sou eu quem escolhe os meus sonhos!
- Então quem o faz?
Silêncio.
- Eu não tive culpa de sonhar um sonho sem eu mesma! Você não pode me culpar por isso!
- Não lhe culparei, apenas lhe punirei.
- Você não pode fazer isso! Eu já lhe disse! Não escolhi sonhar o que eu sonhei...
- Infelizmente as convenções atuais impedem que você continue viva, e, se eu não lhe matar nesse instante, alguém acabará por fazer o mesmo nos próximos minutos.
- Mas você não me ama?
- Hunf, como eu poderia continuar amando alguém que sonha o que você acabou de sonhar?
A moça chorou altamente, o homem dirigiu-se à cama e lá pegou uma fronha suja. No sofá, a moça soluçava vibrantemente. Com medo.
-Vamos, sente-se direito.
- Não acredito que você terá coragem de fazer isso comigo. Eu entendo que o que fiz é absurdo, mas... eu não quero morrer por isso. Livre-me disso!
- Vou livrar-lhe disso, matando-lhe.
Ela meditou por três minutos. Não era uma meditação fúnebre, e muito menos era o número três o seu número da sorte, mas, dessa vez, ela acertara em cheio:
- Como você pode ter certeza de a obrigação que agora você sente em me matar para me punir não é algo apenas fruto da sua mente?
- Como? – ele não havia entendido.
- Digo, você está certo de suas convicções? Você tem certeza que o que você está preste a fazer é exatamente o que espera-se que você faça nessas situações? Você tem certeza de que isso não é uma criação sua?
- Criação? E eu lá sou algum tipo de artista? – debochou.
- Você terá coragem de me matar mesmo sabendo que você pode estar apenas construindo tudo isso na sua cabecinha de jiló?
Silêncio.
- Nesse exato instante – ela continuou – eu posso estar muito bem sentada aqui do seu lado, nesse sofá, como estou agora, mas, ao invés de discutirmos a minha punição, podemos estar conversando sobre as sete maravilhas do mundo. Sete maravilhas deve ser escrito com iniciais maiúsculas?
- Não, eu acho que não.
- Ah, sim, obrigado. Bom, nós podemos muito bem estar agora tendo uma conversa muito cara aos casais da nossa idade, mas na verdade você pode estar ouvindo e criando e construindo coisas diferentes do que a realidade lhe diz. Você pode estar tendo percepções diferentes.
- Hunf, - debochou mais uma vez – e como você explica o fato de eu estar ouvindo isso de você, de você estar me explicando isso agora, se, na verdade, sou eu quem está criando tudo?
Silencio, porém disfarçado.
- Você pode estar começando a tomar consciência. Você pode estar começando a colocar os olhinhos na fresta da porta de vidro transparente.
- Hunf.
- Então, me diga, terá você coragem de executar-me, sendo que, depois de o fazer meu corpo será encontrado e os detetives não descobriram causa alguma para meu assassinato?
- Como não há causa alguma? Esqueceu-se do que você acabou de sonhar?
- Sim, mas isso é apenas uma criação sua.
- Não posso acreditar nisso apenas porque você alega que eu estou desenhando toda essa situação, isso tudo é muito real para mim. Você é quem está me enganando!
Ela fitou-o firmemente.
- E ainda mais - ele prosseguiu – se você é apenas uma criação minha eu posso muito bem lhe matar, assim como um pintor pode queimar um quadro que não lhe agrada!
- Tsc, tsc. Você não me entendeu. Eu não sou uma criação sua. Você está criando apenas essa situação, esses seus argumentos, as palavras que saem da minha boca, a fronha com a qual você pretende me matar... Nada disso está acontecendo de verdade! Abra los ojos, mon amour! Olhe para o céu que está sobre sua cabeça!
- E por que você acha que eu estou fazendo tudo isso?
- Não sei muito bem, mas posso imaginar que você sente inevitável vontade de me matar.
- Como eu poderia fazer isso? Eu te amo!
Ela percebera como é tênue essa linha que agora pairava na sua frente.
- Sim, você me ama.
- É, eu te amo! – disse ele jogando para longe a fronha suja.
O homem a abraçou firmemente e a beijou longamente. Ela permaneceu quieta, recebendo o carinho do amante. Quieta e séria.
Eles se entreolharam, ele sorriu e disse, se levantando do sofá.
- Vou fazer café!
- Enquanto isso eu vou dar uma volta nas sete maravilhas do mundo, tudo bem?
- Claro, meu amor, mas não demore muito.
A moça dirigiu-se até a porta. Saiu da casa.
Começou a andar pela calçada do seu quarteirão, recebendo na face a brisa gélida da manhã. Ela ainda estava com medo de ser pega. E foi no exato momento em que ela se lembrou do seu temor que ouviu as vozes e os passos de uma multidão correndo atrás de si:
“Peguem-na! Ela é a moça que sonhou que estava morta! Vamos todos puni-la!”

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