quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

Pursuit


Havia um telefone no quarto escuro. O carpete do chão recebeu a pressão oriunda do salto da scarpin de couro rosado. Caminhou até a mesa de mogno escuro. As unhas longas estalaram as entrarem em contato com o plástico do telefone vermelho. O ambiente escuro esfriava o ar e coloria de cores diferentes os diversos objetos que lá havia.
- Alô.
- Alô? Carmem está?
- Quem fala?
A outra pessoa não respondeu. A mulher das unhas consertou as mechas do cabelo liso que se encontravam fora da posição normal.
- Carmem está? – repetiu a pergunta.
- Não, ela não está aqui – respondeu e aguardou alguns instantes até o ar pairante começar a deitar no chão – Ela está morta, você não sabia disso? É sim, acidente cardíaco.
Do outro lado da linha, ouviu-se um estalo; alguém batia a porta. A maçaneta girou nas mãos da outra pessoa. A luz pálida do corredor invadiu o quarto fechado. Do outro lado da porta estava o homem.
- Convide-me para entrar.
- Entre.
A porta fechou-se nas mãos do homem.
- Com quem você estava a falar no telefone?
- Eu não estava no telefone.
- Eu lhe ouvi.
- Eu também ouvi quando você bateu a minha porta.
O homem cruzou os braços; A outra pessoa levou a mão ao queixo
- Você estava falando com Carmem?
- Com quem?
- Com Carmem.
- Não. Você estava falando com Carmem.
A outra pessoa moveu seu corpo até a mesa; o homem aproximou-se vagarosamente, como se quisesse sentir a crescente energia da aproximação daqueles dois corpos.
- O que você está fazendo?
- Você gosta de toda essa proximidade?
Então foi aí que os dois se beijaram. Profundamente, como em uma profusão que era capaz de transmitir muito mais do que movimento. E foi um beijo longo: de início, toques simples e leves, que iam se transformando em invasões, penetrações, deglutições; e logo já eram só um, colados e derretidos.
- Que bom ter você de novo comigo.
- Quem disse que eu estou de novo com você?
- Eu sei que você me ama, eu sei que você ainda me deseja.
- Onde está Carmem?
- Foi você quem falou com ela por último, já disse.
O homem afastou-se da outra pessoa. Foi até o balcão da cozinha do tipo americana, enfiou a mão direita no bolso da camisa e tirou de lá um maço de cigarros. Levou um deles a boca. Não acendeu. A outra pessoa contorceu.
- Você disse que iria procurar por Carmem.
- E eu procurei.
- Encontrou?
Ambos ficaram em um silencio que aguardava pacientemente a resposta, como que sentado em uma saleta de espera preenchendo palavras-cruzadas calmamente.
- Sim, encontrei. Mas nunca lhe direi onde ela está.
- Por que? Eu procuro Carmem há semanas!
- Por que você quer mata-la.
- O quê?
- Sim, você sempre temeu uma aproximação entre ela e eu. Nunca aceitou nossa relação, e, agora, com o seu amor declarado por mim, você não a deixará em paz nunca! Ciúmes, conhece essa palavra? Mas saiba que não sou de ninguém. Nem mesmo de você.
- Eu estou começando a achar que você matou Carmem.
- Que absurdo! Não vivemos em um filme surrealista!
- Você tinha inúmeros motivos para faze-lo.
- Mas não fiz! Eu não a matei. Você deseja que eu já a tivesse matado para poupar-lhe o trabalho, não?
- Você já a matou.
- Não! Não a matei! Você não pode acusar-me de uma coisa dessas.
- Ora, ora... Carmem tinha tudo que você sempre quis. Ela era o que você sempre quis ser. Até mesmo nome, ah! Carmem, te fascina.
- Eu a conhecia muitíssimo bem, e livro-me de idealizações.
- Mas não se livra da culpa de te-la matado!
- Acorde, meu bem! Eu amava aquela mulher! Dói seus ouvidos? Dói? Sim, eu amava aquela mulher! Ouviu, benzinho?
Ambos estavam parados. Até que um deles mudou a expressão, saindo de comoção e dor para iluminação, franzindo o cenho. Quebrara a charada.
- Você disse amava?
Silêncio.
- Sim! Carmem está morta! Está definitivamente morta! – berrou começando a chorar.
- Eu já sabia disso, descobri isso hoje mesmo. Queria ver por quanto tempo você me enganaria e esconderia isso de mim. – disse calma e seriamente, ponderando sobre o fato que agora se tornava mais claro e real em sua mente.
Os braços se cruzaram, algumas lágrimas molharam o tapete, as mãos esconderam as bocas. Eles se entreolharam firmemente, como que se quisessem perguntar algo um para o outro.
- Diga-me... Foi você quem a matou?
- Eu nunca seria capaz de fazer isso, um crime desses, que horror.
- Ah, por favor! Você tem uma mente mais insana do que Marques de Sade! Basta lembrar-se das sujeiras que você fazia com aquela mulher. Como vocês conseguiam suportar tamanho nojo de todas aquelas ações? Porquice sem tamanho!
- Tem gente que gosta! Para você aquelas coisas não são normais... Aliás, só o que você faz é que você crê ser normal!
- Você sabe que eu quero você para mim!
- Isso não importa mais! Carmem está morta! E o que eu sentia por você também está morto!
- Responda! Você matou Carmem?
O silencio fez-se mais uma vez. O pequeno feixe de luz que invadia a fresta de baixo da porta deixou de existir. As paredes ouviam atentamente a conversa, mas sem muito entender o que ocorria, pois não tinham olhos.
- Então eu direi-lhe a verdade! Fui eu mesmo quem matou Carmem! Agüente tudo isso agora! Você adora jogos verdes, não?
As duas pessoas se atarracaram e se debateram. Parecia que aquele ódio, das duas partes, não havia sido programado para terminar. E, depois da violência diminuta, veio o choro.
- Vamos! – disse bruscamente agarrando as chaves – Vamos! Temos coisas a tratar com uma certa pessoa.
O homem e a outra pessoa saíram do recinto, trancando a porta. Pegaram o carro. Foram até outro apartamento. Bateram na porta. Bateram de novo. A porta abriu revelando um ambiente também escurecido pela falta de luz noturna.
- Ah, eu já esperava a visita de vocês – disse a mulher das unhas – Venham, cheries.
Os outros dois permaneciam muito sérios. A outra pessoa, depois de assistir o homem sentar-se no sofá, dirigiu-se até a mulher das unhas e beijo-a.
O homem achou aquilo estranho, deveras estranho. Não era uma atitude esperada da parte da outra pessoa. A mulher das unhas sorriu feiamente – seus sorrisos eram todos feios – após o beijo. Ela depositou as ultimas cinzas da cigarrilha sobre um balcão e virou-se às duas pessoas.
- E vou logo dizendo o que vocês querem saber... Fui eu quem matou Carmem. – exclamou a mulher das unhas.
O homem e a outra pessoa se entreolharam sem entenderem coisa alguma.
- Sim, sim. Depois de tudo que aquela mulher me fez, depois de tudo que ela fez às nossas vidas... Eu não suportaria deixa-la viva e andando por aí.
Um ponto de interrogação gigante havia chegado ao recinto. A mulher das unhas percebeu o desentendimento e completou.
- O que está a ocorrer? – perguntou ao homem e à outra pessoa.
O homem começou a ficar nervoso. A outra pessoa ficou desnorteada.
- Não há necessidade de mentir. Eu já afirmei que fui e quem a matou.
O telefone vermelho tocou mais uma vez. Alguém se dirigiu até ele e o atendeu.
- Pois não? – escutou o que a pessoa do outro lado havia a dizer, e depois, escondendo o bocal do telefone, disse às outras pessoas que estavam sentadas na sala – É Carmem.
Uma outra pessoa levantou-se do sofá e tomou o telefone para si. Pôs no ouvido.
- Você está mentindo! Não há ninguém na linha! O que é? Você prefere que ela esteja viva, apenas desaparecida?
- Eu não estou mentindo, era ela! Tenho certeza! Não tenho motivos para mentir!
- Não acredito.
- Também não.
- Então estamos todos mentindo.

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