quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

Blanche

Pois, afinal, por mais delicado que seja o fio, a lã esteve outrora no lombo de uma ovelha e nunca deixará de ser ovelha. Porque isso não era mais necessário, nem mesmo desejado. Cami ainda gostava de pensar sobre isso, quando observava o tipo tecido que compunha belamente seu vestido claro. Passava os dedinhos leves pela roupa. Estava perdidamente feliz, estava perdidamente perdida.
Todos querem o bem, todos reclamam o bem. Ela também. Mas reclamava gritando, como todos os outros, mas queria berrando, como todos os outros, voltada para uma parede branca, lisa, inócua, linear, com os braços largados ao lado do corpo. Mas Cami era acompanhada de pulseiras, de várias cores. Mas ela não via as cores, ela era daltônica como uma espanhola muda e seca.
Gemia, com o queixo caído, babando aos poucos e devagar, deixando sua língua ressecar, sua goela se perder e se contorcer. Fazia movimentos vagarosos, aquosos e delicados: era uma dama. Cami, venha até aqui. Voooooooo. E assim ela vinha, passo a passo.
Cami não tinha músculos na face. Nem mesmo nas pálpebras. Ela se irritava de sentir o vento roçando-lhe a pele e os cabelos, sentia-se cansada e derretida. Derretendo-se cada vez mais. Cada vez mais. Até cair no sono...
...
No sono profundo...
...
...E acordar.
Levantou da cama, chutou as chinelas para longe, deu cinco saltos, sorriu violentamente até rasgar as bochechas, puxou os cabelos para trás, deu sete gritos, rebolou, bateu palmas, rodopiou, piou, correu, foi até a rua, olhou para os lados, bagunçou os cabelos, correu, deu cambalhotas, pulou oito vezes, correu, chutou o meio fio, subiu na arvore, C
A
I
U da árvore, gemeu progressivamente, reclamou, levantou-se, remexeu-se, dançou, pulou, correu, rodou, fez careta para o cachorro, mostrou o dedo mindinho para a velha, mostrou a língua para o velho, beijou o muro, lambeu a rua, esfregou-se no asfalto, comeu cascas de árvore, suou sobre folhas, tropeçou e foi ao chão.
Voltou para casa com a cabeça cheia de completitudes vazias. Sentia-se completa, havia feito muito. Foi à seu quarto, olhou-se no espelho. Estava imensa. Estava gOrda, muito gOrda. Tinha banhas, tinhas rugas, tinha sobras, tinha bundas, tinhas aças, tinha vacas em si mesma.
Olhou, desesperada, para o criado-mudo que estava a gritar-lhe o nome. Cami, Cami! Viu, sim ela viu, todos os seus dedinhos

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